Fabio.Nunes 08/03/2024
Transgressor
A mão esquerda da escuridão - Ursula K. Le Guin
Editora: Aleph, 2019
Março de leituras só das minas.
Planeta Gethen. Também conhecido como Inverno.
Um planeta habitado por uma espécie humana um tanto diferente da nossa: os gethenianos são andróginos ambissexuais. Vivem um ciclo de 26 a 28 dias em que em 21 ou 22 são sexualmente inativos e, portanto, não manifestam biologicamente qualquer diferenciação de gênero em seus corpos, parecendo andróginos. Esta é a fase sommer. Nos demais dias entram numa fase chamada kemmer, uma espécie de cio, onde os indivíduos podem manifestar características sexuais caso haja parceiros para tal. Em não havendo parceiros, permanecem andróginos. Encontrando um parceiro também na fase do kemmer, o indivíduo começa a desenvolver características sexuais (hormônios e órgãos genitais) de um dos gêneros, enquanto o outro se desenvolve no sentido oposto, havendo também a possibilidade de parceiros Kemmer do mesmo sexo, mas que são muito raras.
"Luz é a mão esquerda da escuridão
e escuridão, a mão esquerda da luz.
Dois são um, vida e morte, unidas
como amantes no kemmer,
como mãos entrelaçadas,
como o fim e a jornada."
Como emissário do Ekumen (uma espécie de ONU interplanetária) conhecemos Genly Ai, um homem terráqueo e negro que chega a Gethen para propor aliança com as outras humanidades espalhadas pelo universo conhecido. Por meio desse protagonista tomamos conhecimento dos povos e países do planeta Inverno, e passamos a conhecer sua complexidade, tanto no âmbito sociológico quanto em termos mitológicos, biológicos e psicológicos.
Saliente-se que Genly Ai mostra-se um narrador não confiável, cheio de seus próprios preconceitos de gênero que acaba por se transformar enquanto convive e estuda, tal qual um antropólogo, os gethenianos.
Esse é o mote da obra. Mas não toda ela. Um livro curto para aquilo que se propõe e para a miríade de assuntos que aborda. Não se espante com o início, pois ele causa bastante estranheza. Aguente firme, pois depois a coisa deslancha.
Ursula Le Guin nos presenteia com uma obra de impacto criativo, acima de tudo ? transgressora. Uma ficção científica, publicada no auge da contracultura (1969), de viés feminista que discute a normatividade de gênero e nos instiga a sair do lugar-comum. Este é um livro cheio de subtextos, de sagacidade nas entrelinhas, que não se dispõe a dar respostas, mas a apresentar questões que devem ser pensadas ? sobre política, religião, patriotismo, papel de gênero, sexualidade, amor.
Por ser uma ficção que se desenrola num mundo totalmente novo, eu, como leitor organizado que sou, senti falta de um mapa - pelo amor de Simone de Beauvoir né Ursula! Personagens zanzando pra lá e pra cá o tempo todo e nenhum mapinha pra ajudar ao leitor a se achar (Tolkien se revira em seu túmulo). Mas claramente essa era a intenção da autora, chamar a atenção para aquilo que realmente importa nessa obra.
Em resumo, um bom livro para se realizar leitura conjunta viu. Dá o que falar.
"a verdade é uma questão de imaginação. O fato mais concreto pode fraquejar ou triunfar no estilo da narrativa: como a joia orgânica singular de nossos mares, cujo brilho aumenta quando determinada mulher a usa e, se usada por outra, torna-se opaca e perde o valor. Fatos não são mais sólidos, coerentes, perfeitos e reais do que pérolas. Mas ambos são sensíveis."
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"- (...) você sabe, por experiência própria, o que é patriotismo?
_ Acho que não sei. Se por patriotismo você não queira dizer amor pela própria terra, pois isso com certeza eu sei o que é.
_ Não, não quero dizer amor, quando falo em patriotismo. Quero dizer medo. Medo do outro. E suas expressões são políticas, não poéticas: ódio, rivalidade, agressão. Cresce dentro de nós esse medo."
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"Choque cultural não era quase nada comparado ao choque biológico que sofri como macho humano em meio a seres que eram, oitenta porcento do tempo, hermafroditas assexuados."
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"Lendas sobre previsões são comuns em toda a Família Humana. Deuses falam, espíritos falam, computadores falam. Ambiguidade oracular ou probabilidade estatística fornecem escapatórias, e as discrepâncias são eliminadas pela fé."
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"_Ainda não percebeu, Genry, porque aperfeiçoamos e praticamos a vidência?
_ Não...
_ Para demonstrar a completa inutilidade de saber a resposta à pergunta errada."
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"Fardo e privilégio são compartilhados de modo bem igualitário; todos têm o mesmo risco a correr ou a mesma escolha fazer. Portanto, ninguém aqui é tão completamente livre quanto um macho livre, em qualquer outro lugar."
(...)
"Considere: uma criança não tem nenhum relacionamento psicossexual com sua mãe ou seu pai. O mito de Édipo é inexistente em Inverno."
(...)
"Como ocorre com todos os mamíferos, exceto o homem, o coito só pode ser realizado por convite e consentimento mútuo;"
(...)
"Considere: não existe nenhuma divisão da humanidade em metades forte e fraca, protetora/protegida, dominante/submissa, dona/escrava, ativa/passiva."
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"Por ser tão estritamente limitado pela natureza, o ímpeto sexual dos gethenianos não sofre realmente muita interferência da sociedade; há menos sexo codificado, canalizado e reprimido do que em qualquer sociedade bissexual que eu conheça. Abster-se é uma decisão inteiramente voluntária; entregar-se ao prazer é um ato inteiramente aceitável. Medo e frustração sexuais são ambos extremamente raros. Este era o primeiro caso que eu via de um propósito social indo de encontro ao impulso sexual. Por ser uma supressão, e não meramente uma repressão, não causava frustração, mas algo mais funesto, talvez, com o decorrer do tempo: passividade."
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" Como se pode odiar, ou amar, um país? (...) Conheço pessoas, conheço cidades, fazendas, montanhas, rios e rochas, sei como o sol poente do outono se esparrama pela face de um certo tipo de terra arada nas montanhas; mas qual o sentido de impor uma fronteira a isso tudo, dar-lhe um nome e deixar de amar o lugar onde o nome não se aplica? O que é o amor pelo seu país? É o ódio pelo seu-não país?"
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"Amigo. O que é um amigo, num mundo onde qualquer amigo pode ser um amante quando muda a fase da lua? Não eu, trancado em minha virilidade: não era amigo de Therem Harth, ou de qualquer outro de sua raça. Nem homem nem mulher, nenhum dos dois e ambos, cíclicos, lunares, metamorfoseando-se sob o toque das mãos, crianças defeituosas colocadas no berço da humanidade, não eram carne da minha carne, não eram meus amigos; não haveria amor entre nós."
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"É bom ter um objetivo na jornada que empreendemos; mas, no fim das contas, o que importa é a jornada em si."
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"Acho que a coisa mais importante, o fator isolado de maior peso na vida de alguém é se nasceu macho ou fêmea. Na maioria das sociedades esse fator determina as expectativas da pessoa, suas atividades, seus pontos de vista, sua ética e conduta... Quase tudo. Vocabulário. Usos semióticos. Roupa. Até a comida. (...) É extremamente difícil separar as diferenças inatas das aprendidas. Mesmo onde as mulheres participam, em igualdade com os homens, na sociedade, ainda são elas, afinal, que ficam grávidas e cuidam praticamente sozinhas da criação dos filhos..."
(...)
"(...) não posso lhe dizer como são as mulheres. (...) De certa forma, as mulheres são mais estranhas para mim do que você. Com você eu pelo menos compartilho um dos sexos..."
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"Vi então novamente, e de uma vez por todas, o que sempre tivera medo de ver e vinha fingindo não ver nele: que ele era uma mulher, assim como era um homem. Qualquer necessidade de explicar as origens desse medo desapareceu junto com o próprio medo; o que me restou, finalmente, foi a aceitação dele tal como era."
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"Não tinha pensado, quando falei, no desprezo dessa gente pelo suicídio. Para eles, assim como para nós, não se trata de uma escolha. É a renúncia à escolha, um ato de traição. Para um karhideano que lesse nossos cânones, o crime de Judas não estaria na traição a Cristo, mas no ato que, selando o desespero, nega a chance de perdão, mudança, vida: seu suicídio."
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"não havia sombra para revelar nada."