e-zamprogno 16/05/2024Uma saga cinematográfica pra se ler devagarAo ler a introdução do livro escrita pela própria autora, já esperava algo profundo. Um pensamento que me chamou a atenção foi quando ela escreveu – não exatamente nestas palavras – que um artista expressa o que não pode ser dito em palavras; e um escritor é um artista que usa palavras para expressar o que não pode ser dito. E é, de fato, tão profundo que talvez eu não tenha sido capaz de atingir todos os níveis de sutileza. Eu não estava preparado para a saga de Genly Ai.
Genly Ai, o protagonista e terráqueo, é um enviado de uma federação planetária para fazer o primeiro contato pessoal com os habitantes de um planeta periférico e isolado, Gethen. A missão dele é apenas dar a conhecer a este planeta a existência de vida humana em outros mundos e abrir as portas da aliança planetária para mais um membro. Segundo ele mesmo explica, os primeiros enviados vão sempre sozinhos, pois um alienígena é uma curiosidade; dois ou mais podem ser vistos como uma invasão.
A autora é antropóloga e, como tal, explorou muito bem o primeiro contato entre duas raças humanas: o representante de uma raça analisando os da outra e vice-versa. Mas Gethen, como a Terra de hoje, é dividido em diferentes nações, com regimes políticos diversos, sem falar da cultura, etnia, línguas, tradições e religiões. Portanto, ele começa a jornada por uma nação que, por acaso, é uma monarquia, onde recebe o apoio de um alto funcionário do governo, Estraven, o segundo personagem mais importante do livro. Em meio às intrigas da corte e à disputa política por poder, Genly Ai sente que está perdendo o apoio de Estraven, até que este é banido do reino como traidor. Sem entender bem quem traiu quem, mas definitivamente sem apoio, Genly Ai se vê obrigado a buscar ajuda para sua missão na nação vizinha, onde mais tarde se reencontra com Estraven, desta vez como refugiado.
O que acontece a partir daí eu não poderia revelar sem estragar a melhor parte da história, mas posso dizer que o livro é como se fosse o diário de Genly Ai desses dias. Alguns capítulos são intercalados por “documentos” históricos, histórias e lendas do próprio planeta, e até mesmo citações do diário de Estraven, supostamente textos que Genly Ai anexou aos seus registros pessoais. O livro então aborda temas sob a ótica da antropologia, da política, da geopolítica, e ainda de maneira pessoal e íntima, pois o que há de mais íntimo do que o diário de uma pessoa?
Os temas mais íntimos que ela aborda são atemporais, mas os demais continuam tão atuais e relevantes que é difícil acreditar que o livro foi escrito em 1969! Certamente um clássico, uma bela obra para se ler devagar, absorvendo aos poucos o conteúdo denso e exposto numa saga cinematográfica.