David Ariru 15/02/2017
Justiça...
De forma sucinta, talvez até simplista e apequenada, pode-se dizer que fazer justiça é uma ação que busca dar a cada parte envolvida o quinhão merecido. Mas quem merece o quê? E por quê? Quem decide a respeito disso? Prontamente surgem várias perguntas pertinentes, mas o ponto abordado aqui será ligeiramente diverso; a justiça relacionada a crimes e punições.
O texto poderia ter principiado já abordando essa pauta específica, mas como é tão constante sua presença nos debates atuais da sociedade, decidi começar relembrando que a justiça não se apresenta apenas nesse meio. Embora, em todos os âmbitos, a justiça mantenha sempre um conceito básico. Conceito esse que já dura milênios, na famosa “Lei de talião”, por exemplo — sintetizada e muito difundida pelo dito “Olho por olho e dente por dente” — já podemos identificar o conceito básico: “A cada um o quinhão merecido”.
Segundo historiadores e estudiosos da área essa lei, com autoria de Hamurabi que foi um rei da Babilônia, teria como principal objetivo implantar a justiça nas relações de desavenças e conflitos entres pessoas, estipulando um limite para os revides aos danos sofridos que até então ocorriam de maneira desproporcional e, por isso, injusta, o que acabava gerando um círculo de vinganças e de violência. Antes dessa lei era normal uma pessoa que tivesse um pertence seu roubado se vingasse do ladrão da forma que quisesse, seja tomando pertences seus, agredindo-o ou mesmo por meio do assassínio. Após a lei ficou estabelecido que o mal feito a alguém poderia ser retribuído ao malfeitor apenas em igual proporção; assim, se cortam-me a mão direita, tenho o direito de cortar a mão direita de quem fez isso comigo; se matam-me, poderão os meus matarem meu assassino; se roubam- me uma galinha, poderei eu pegá-la de volta ou o equivalente etc. Portanto, trata-se ainda de uma vingança, porém uma vingança com rédeas; proporcional e simétrica.
Nos casos de roubo talvez a ideia de vingança fique em segundo plano, mas quando se trata de casos mais graves e danos físicos, ela emerge totalmente. Se causam-me um dano físico, furam-me um olho por exemplo, posso vingar-me furando o olho de quem o fez a mim, mesmo que isso não restitua de volta meu olho ou necessariamente impeça que isso aconteça de novo; basicamente a vingança pela vingança. Talvez o temor de represálias possa até ter seu papel em manter uma sociedade no caminho ético, mas certamente não é onipotente nesse aspecto, além disso, não é o enfoque desse texto já um tanto desfocado.
Então seria a justiça, no âmbito de malfeitos e penalidades, — a tão aclamada justiça — Apenas a vingança suavizada, proporcional, institucionalizada e com um nome mais agradável? A princípio sim, ou pelo menos, se levarmos em conta esse contexto, podemos afirmar que há uma divisão tênue entre justiça e vingança. Porém, para além disso, existem outras reflexões acerca do assunto, e uma delas, de equivalente importância na história da humanidade, é o que se chama de “Regra de ouro” e que foi exortada por diversas religiões e crenças, embora, para o intuito do texto, será abordada somente a sua apropriação por Jesus Cristo, a base do cristianismo e da igreja católica, a religião de Dante Alighieri.
Nesse novo pensamento não é incentivada nem institucionalizada a vingança, proporcional ou não, mas sim uma atitude de empatia ao próximo, agindo perante ele como quereríamos que agissem perante nós, a proporção nesse caso se dá de outra forma: fazemos o mal a outrem assim como queremos que nos façam o mal e o bem assim como queremos que nos façam o bem. Dando alguns exemplos da própria Bíblia temos: Mateus 7:12: "Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles; esta é a Lei e os Profetas."; Marcos 12:30-31: “... Amarás teu próximo como a ti mesmo...”.
Além disso, Jesus cita a lei de talião e propõe uma mudança de pensamentos e atitudes; uma nova forma de quebrar o círculos de vinganças e injustiças: Mateus 5:38-40 “Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; E, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; ...”. Ora temos então dois modos extremamente diversos de reagir às injúrias que nos fazem, e se levarmos em conta o preceito adquirido empiricamente de que somos todos propensos à ira e à vindita quando somos ofendidos, temos que um modo pode ser tido como mais ponderado e razoável que outro, até mesmo mais ...humano. Pois um dos modos de reação se trata de uma justiça vingativa que permite nos entregarmos à desforra, à ira e à crueldade, mas só até certo ponto. Já o outro modo de reação é baseado na pacificidade e na compaixão que não dá ensejo para revidar o dano sofrido com mais dano, seja ele proporcional ou não.
Chegamos finalmente no ponto onde a primeira canção de Dante, o Inferno, entra em cena. Nessa obra prima do intelecto humano (não posso lhe tirar o mérito devido, seria ...injusto) qual o modo de reação perante injúrias que nos é apresentado de Deus perante os Humanos? Mais, antigamente, no contexto de Dante e da idade média, qual o tipo de reação que a maioria da sociedade adotava para resolver seus conflitos? E atualmente?
Respondo só à primeira pergunta e digo que é extremamente explícito a justiça da vingança proporcional do Divino contra o Homem em Dante, não só pelo contexto que já deixa isso óbvio o bastante, mas também pelas próprias palavras de Dante ao decorrer da narração quando fala da “justiça” e da “vingança” divina, além disso, podemos ver o poema em si como um ato de vingança contra seus contemporâneos que muito lhe prejudicaram. E tudo isso a despeito do que foi incentivado pelo próprio fundador de sua religião. Quanto as demais questões o caso se apresenta mais complexamente.
Talvez os homens sejam demasiadamente imperfeitos e pérfidos para ideais tão grandes. Talvez o Homem seja melhor sonhado que vivido. Talvez ainda estejamos perdidos na selva escura e sem guia. Talvez não seja este o meio do caminho, mas o fim. Péssimo cenário, mas ao menos é tudo isso o talvez e não o certo; e enquanto há vida, o talvez é apenas uma possibilidade passível de mudança.