Ricardo 18/09/2022
?E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz a Caim, e disse: Alcancei do SENHOR um homem.
E deu à luz mais a seu irmão Abel; e Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra.
E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor.
E Abel também trouxe dos primogênitos das suas ovelhas, e da sua gordura; e atentou o Senhor para Abel e para a sua oferta.
Mas para Caim e para a sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante.
E o Senhor disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante?
Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar.
E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou.
E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não sei; sou eu guardador do meu irmão?
E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra.
E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão.
Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra.
Então disse Caim ao Senhor: É maior a minha maldade que a que possa ser perdoada.
Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me esconderei; e serei fugitivo e vagabundo na terra, e será que todo aquele que me achar, me matará.
O Senhor, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse.
E saiu Caim de diante da face do Senhor, e habitou na terra de Node, do lado oriental do Éden.?
Gênesis 4:1-16
?... mas sobre ele deves dominar.?
Esse é o principal argumento do belo romance A Leste do Éden, publicado em 1952, do americano John Steinbeck, agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1962.
O tema está presente desde as primeiras páginas, mas só na metade do livro a discussão vem à luz entre Samuel Hamilton, imigrante irlandês para as terras californianas, Adam Trask, latifundiário vindo do leste dos EUA, e Lee, seu criado chinês.
Apesar da humilde condição de criado dos Trasks, Lee esbanja sapiência, profunda vida interior e é um estudioso de literatura e da Bíblia. Sobre o texto bíblico acima, especificamente o trecho ?sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar,? diz Lee a seus interlocutores: ?A tradução American Standard ordena que os homens triunfem sobre o pecado, e você pode chamar pecado de ignorância. A tradução King James faz uma promessa em ?Tu triunfarás? (Thou Shalt) , querendo dizer que os homens certamente vencerão o pecado. Mas a palavra hebraica, a palavra timshel ? ?Tu poderás dominar? (Thou mayest) ? dá-lhe uma escolha. Pode ser a palavra mais importante do mundo. Significa que o caminho está aberto. Joga a responsabilidade de volta para o homem, pois se o ? Tu Poderás? (no sentido de probabilidade, denotado pelo verbo may em inglês? pode ser que tu possas) é possível, então é também verdade que ?Tu Não Poderás? (pode ser que tu não possas ? Thou mayest not) também seja possível.
......?
Lee continua: ?Agora existem milhões de pessoas em suas seitas e igrejas que ouvem a ordem ?Tu deverás? e colocam o peso na obediência. E há outros milhões que veem predestinação em ?Tu triunfarás? (Thou shalt). Nada do que eles possam fazer pode interferir com o que virá a ser. Porém ?Tu poderás dominar? (Thou mayest), poxa, isso torna um homem grande, dá-lhe a estatura dos deuses, pois, em sua fraqueza e imundície e no assassinato de seu irmão ele ainda tem uma grande escolha. Ele pode escolher seu caminho, lutar por ele e vencer.?
Em suas 600 páginas, Steinbeck nos mostra uma paisagem humana cheia de desejos inconfessáveis, temores, ardis, ciúme, traição, inveja, generosidade, alegria, tristeza. Ao emprestar um tema bíblico para compor sua obra, Steinbeck, não por acaso, chama o pai dos gêmeos de Adam e os seus filhos de Caleb (Caim) e Aaron (Abel). Assim como Deus, Adam só tem olhos e reconhecimento por Aaron. Nada do que Caleb faz é notado por Adam, o que levanta sua ira e ciúme contra o irmão.
O terreno onde se desenrola a estória é no Leste do Éden, o lugar para onde Caim fugiu para se esconder da face do Senhor, o lugar cuja terra não produz, em que ele é maldito e vagabundo. Enfim, o lugar em que os homens vivem e lutam contra as paixões para, sempre que escolhem vencê-las(Timshel), ganharem a estatura dos deuses. Muitos escritores acreditam que a mais bela flor é a flor do lodo (lembro-me de Nelson Rodrigues), e têm como fundo de seus personagens as paixões desenfreadas, o pecado original. E se somos todos marcados pelo inexorável pecado original ancestral vivendo a Leste do Éden, temos todos também o livre arbítrio para escolher não sermos dele vítima.
A ação se passa no início do século XX e tem como pano de fundo a colonização do oeste americano, os costumes dos imigrantes, a chegada do automóvel, a primeira guerra mundial, o empreendedorismo. O narrador é um dos netos do imenso personagem Samuel Hamilton, o imigrante irlandês, patriarca de uma família enorme, que ocupa todas as páginas do livro com sua personalidade iluminada, seu carisma, bom humor, inteligência, curiosidade e alegria contagiante. Lee, o criado chinês, tem na obra a mesma estatura de Samuel Hamilton e é o grande agente de mudança do livro, seguido pelo próprio Samuel. E Adam Trask, o pai dos gêmeos, egresso de uma família nos moldes em que formou a sua, vítima das mesmas paixões, é o pivô da estória, pois tudo começa e termina nele. E não se pode deixar de omitir Kate, ou Cathy, a personagem feminina ardilosa (alusão à Eva da Bíblia?), que desencadeia todo o mal da trama. Não há misoginia em Steinbeck, porém, pois equilibra a frieza, maldade e atração de Kate com a leveza, força e pragmatismo de outras grandes mulheres ? a esposa de Samuel, suas filhas e Abra, a paixão juvenil de Caleb e Aaron, que desempenha um grande papel no desfecho da estória.
As descrições de Steinbeck tem a beleza dos campos, vales e montanhas do oeste americano ainda virgem. Nada é supérfluo, tudo é encantador. Seus muitos diálogos são frequentemente precedidos de um texto preparatório e, quando finalmente acontecem, tornam-se vivos, contundentes, concisos e interessantes.
Steinbeck usa capítulos curtos e densos. Muitos deles enchem os olhos e o coração dos leitores. Porém é no final, no crescendo de culpa, desespero e desesperança de Caleb, em que ele chega a repetir as mesmas palavras de Caim pela força do mito (ainda que não o esteja conscientemente citando), que Steinbeck reúne tudo e desata o nó do argumento bíblico acima exposto. O desfecho não é óbvio, não é feliz, nem triste - é sublime. Minha sensação, ao término da leitura, era de uma dilatação total, de torpor, como se tivesse tomado uma droga de efeito muito bom e prolongado. Que poder tem a boa literatura!