spoiler visualizarPaulo 16/01/2018
A cada edição de Eden eu fico impressionado de o quanto Endou é capaz de descer para apresentar uma história mais pés no chão e menos fantástica. O autor consegue encarnar perfeitamente o espírito dos autores cyberpunk e usar todo o pano de fundo de robôs e ciborgues para apresentar uma história muito humana e de pessoas reais. Se tirássemos cada camada de ficção científica e ação da história veríamos algo extremamente realista e que poderia estampar as páginas de um jornal amanhã.
TEM LEVES SPOILERS A SEGUIR. LEIA POR SUA CONTA E RISCO!!
Essa é uma edição bem suja e violenta. Já tinha ouvido alguns comentários na internet do pessoal comentando a respeito. Só demonstra o quanto o Endou não se importou com os críticos e foi capaz de entregar algo nesse nível. A escrita está muito boa, algumas páginas chega a respingar sujeira e sangue por todos os lados. Tem muitas frases de efeito espalhadas por toda a história e é aqui que vemos o quanto o autor é bastante pessimista acerca da humanidade. Gostei do roteiro, só achei um pouco apressado em algumas partes de forma a encerrar alguns plots e o Tony que foi meio deixado de lado por aqui, aparecendo mais como aquele cara no fundo que tem o poder. Para alguém que é tão mencionado ao longo de todo esse arco, ele deveria ter tomado alguma ação. Isso que talvez tenha estragado um pouco da história, fazendo-a inverossímil: nunca deixaria a resolução dos problemas de uma guerra de gangues nas mãos de um moleque, por mais filho do Ennoia que o Elijah seja.
Os traços estão muito legais. Achei que o autor teria problemas aqui sobre como desenhar este mundo decadente e repleto de violência das comunidades da América Latina. Exige muita pesquisa e informação; não basta só ver fotos de favelas ou de comunidades pobres. Não sei como o Endou fez, mas ele conseguiu se sair bem por aqui. Curti até mesmo o campinho de futebol onde o Pedro e o Rico cresceram juntos. O universo de violência e vício também é bem representado no olhar da Manuela. O final apresenta uma boa sequência de ação no aeroporto e gostei da forma como as coisas se desenrolaram ali. Não foi apenas uma série de porradas, tiros e explosões; teve desenvolvimento de história ali.
"Não são poucos os pais que escolhem a heroína no lugar dos próprios filhos."
Fiquei devendo na resenha anterior falar um pouco sobre as drogas que o autor aborda ao longo da trama. A dupla formada por Pedro e Manuela servem para nos mostrar o quanto o mundo das comunidades pobres na América Latina é cercado por essa atmosfera do vício das drogas. Tudo gira em torno do tráfico: ser um aviãozinho, vender a droga, ser um chefe, possuir acesso às comunicações, ser usuário. Nas comunidades mais pobres a economia do tráfico domina tudo. Ou você vai para esse mundo, ou você acaba sendo sugado por ele. E nós temos duas trajetórias confusas nesse meio. Pedro acaba tendo que abandonar os seus sonhos para poder ajudar sua mãe, viciada em cocaína. Sem condições de sustentar em casa e tendo sido abandonado pelo pai, Pedro se torna o chefe. E pouco a pouco o mundo do tráfico acaba fazendo com que a sua personalidade mude. Ele não é um cara mau, mas uma pessoa que foi transformada pelas suas escolhas de vida (ou pela falta de escolhas). Por trabalhar em uma comunidade pobre dominada por milícias e traficantes eu convivo com jovens que veem apenas nesse mundo a transformação em adulto. Muitas vezes é a sedução do dinheiro fácil, outras vezes é a própria família envolvida de alguma forma ou a falta de opção mesmo. Não dá para culpabilizar um problema social. O Brasil não é um país gentil com sua população empobrecida.
Por outro lado temos Manuela e seu vício em heroína. Quando descobrimos o que ela fez para conseguir um pouco de drogas, nos revoltamos. E é para ficar mesmo. Mas, sua ação constitui algo tão comum que chega a ser estarrecedor. As drogas tiram a nossa sanidade, a nossa capacidade de julgar o que é certo ou errado. A sensação de esquecimento e sublimação fornecida por ela é sedutora. É como uma loira estonteante sedenta por sexo que atrai o homem para uma onde de destruição. Acompanhando a série, a gente acaba desejando algum tipo de redenção para Manuela, que ela consiga superar o vício e poder cuidar de Cece, sua filha pequena. Porém, Endou nos mostra que não estamos diante de uma história de redenção, mas de algo real e cruel. Tomamos uma bela rasteira no final com as escolhas que vão ser feitas por Manuela que acabam afetando o desfecho entre Elijah e Pedro e até mesmo o destino de Cece. Dizer que eu não fiquei revoltado ao final é pouco, revelando o quanto o autor não alivia nos golpes.
Esse quarto volume serviu para vermos mais um pouco do crescimento de Elijah. Aqui ele resolver realmente tomar certas atitudes por si próprio. Como ele está aprendendo, acaba errando mais do que acertando e isso põe em risco a vida e o destino das pessoas que ele gosta. Elijah ainda tem uma visão romântica do mundo. Quando Pedro usa formas reais de afetá-lo, ele acaba cedendo a pressão e desejando matar seu antagonista. No fundo ele não pensa em o quanto simples ações causam consequências terríveis. É assim com a internação de Manuela e é assim lá no final quando ele defende Helena. Ao decidir sujas suas mãos ele não entende o quão profundo vai precisar descer para atingir o que ele deseja. A questão é: será que é isso mesmo o que Elijah deseja para si? Tem outra frase muito boa nessa edição que diz que defender pessoas e ser forte são coisas completamente diferentes. Talvez aqui possamos traçar até um paralelo entre as trajetórias de Elijah e Pedro. Elijah pode vir a se tornar um Pedro no futuro caso suas decisões se provem equivocadas. O que a Automater tem medo é de que isso possa realmente acontecer.
O quarto volume está repleto de ação e muita tragédia. Ah, galera... para aqueles que não gostam, tem cenas de sexo aqui. Bem explícitas mesmo. Então se você não curte, passe longe. No mais, se você está atrás de uma boa história, estará muito bem servido. Uma história que mesmo com todas as fantasias e ficcionices, tem muito de realista. Uma história que fala de pessoas, de redenção (ou não), de escolhas (ou da falta delas) e do terrível vício que são as drogas. Vou deixar para falar do romance na próxima resenha. (less)
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