Carolina 29/09/2024
O homem possui ou um Deus ou um ídolo
Girard descreve a busca pela divindade através do desejo metafísico, cujo funcionamento dá-se de forma triangular, na qual o indivíduo, através de um mediador, encontra um objeto de desejo, um ídolo.
O desejo metafísico (a vaidade) metamorfoseia o objeto, transformando-o em algo que ele não é - apenas o sujeito o percebe daquela forma. Ao obtê-lo, advêm a frustração, pois não alcança a gratificação que procurava. O amor verdadeiro não transfigura - as qualidades que esse amor descobre em seu objeto, a ventura que dele espera, não são ilusórias.
Estamos tratando aqui do "temperamento ciumento" e da "natureza invejosa" aos quais todos estamos suscetíveis - a irresistível propensão em desejar o que desejam os Outros, ou seja, imitar seus desejos. O que o romancista medíocre nos daria como provindo dele, o romancista genial nos apresenta como advindo do Outro, e eis o que faz a intimidade verdadeira da consciência.
À medida que vão se inflando as vozes do orgulho, a consciência de existir passa a sentir mais amargor e solidão. O impulso da alma para o lado de Deus é inseparável de uma descida para DENTRO DE SI MESMO. Inversamente, a retração do orgulho é inseparável de um movimento de pânico para o lado do OUTRO. É porque não ousa encarar de frente seu NADA que o herói se precipita em direção ao Outro poupado, aparentemente, pela maldição.
É assim que a publicidade mais hábil não procura nos convencer que um dado produto é excelente e sim que ele é desejado pelos Outros.
O ser de paixão se dirige ao objeto de seu desejo sem se preocupar com os Outros. É o único realista num universo de mentira. Eis porque parece sempre um pouco maluco. Ele desnorteia e desorienta o vaidoso porque vai direto à verdade. O ser de paixão é a flecha indicadora num mundo invertido. O ser de paixão é a exceção, o ser de vaidade, a norma.
Proust e Dostoiévski não definem nosso universo pela ausência do sagrado, como fazem os filósofos, mas por um sagrado pervertido e corrupto que envenena poupo a pouco as fontes da vida. O desejo metafísico arrasta suas vítimas para o lugar ambíguo do fascínio. O ser fascinado que quer esconder de nós sua fascinação e escondê-la de si próprio, tem sempre de fingir estar vivendo segundo um modo de vida compatível com a liberdade e a autonomia que ele se gaba de usufruir. Revelar a verdade do romancista é revelar a mentira de nossa própria literatura.
A liberdade não pode se afirmar a não ser sob a forma de uma conversão autêntica. Tão logo o sujeito desejante percebe o papel da imitação em seu próprio desejo, ele tem que renunciar ao desejo ou renunciar ao seu orgulho, já que o desejo faz de nós escravos. Apreender a verdade metafísica do desejo é prever a conclusão catastrófica. Toda a literatura romanesca é arrastada pela mesma enxurrada, todos os heróis obedecem a um mesmo chamado em direção ao nada e à morte. A transcendência desviada é uma descida vertiginosa, um mergulho cego nas trevas.
Ao renunciar à procura da divindade no ídolo, o herói renuncia à escravidão. Todos os planos de vida se invertem, todos os efeitos do desejo metafísico são substituídos por efeitos contrários. A mentira dá lugar à verdade; a angústia à lembrança; a agitação ao repouso; o ódio ao amor; a humilhação à humildade; o desejo segundo o Outro ao desejo segundo Si próprio, e a transcendência desviada à transcendência vertical.
O herói triunfa no fracasso, ele triunfa porque esgotou seus recursos, é-lhe preciso pela primeira vez olhar de frente seu desespero e seu nada. Mas esse olhar tão temido, esse olhar que é a morte do orgulho é um olhar salvador. Tudo é dado ao romancista quando ele chega a esse Eu mais verdadeiro do que aquele que cada um vive exibindo. É esse Eu que vive de imitação, ajoelhado diante do mediador.
Ao renunciar à divindade enganosa do orgulho, o herói se liberta da escravidão e se apodera finalmente da verdade de sua infelicidade. Essa renúncia não se distingue da renúncia criadora. É uma vitória sobre o desejo metafísico que faz de um escritor romântico um verdadeiro romancista.
Na conclusão, o herói encontra a liberdade através da morte - real ou simbólica - ao morrer para o mundo, e através do afastamento das paixões e dos compromissos sociais - a lucidez sublime - encontra sua ressurreição.