naomi 16/01/2011
Shindô Renmei: terrorismo e repressão
O livro Shindô-Renmei: Terrorismo e repressão faz parte de uma coleção que vasculha os arquivos do Deops [Departamento Estadual de Ordem Política e Social ou Delegacia Especial de Ordem Política e Social, depende do autor], o departamento criado no governo de Getúlio Vargas [Estado-Novo] para controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder. A pesquisa foi realizada pela Faculdade de História da USP e dividida em módulos.
Um pouco de História
Em 1945, após os EUA bombardearem as cidades de Hiroshima e Nagasaki, o Japão rendeu-se. O então imperador Hiroito assinou o Ato de Rendição no convés do navio Missouri e fez um pronunciamento pelo rádio em que informava que não era descendente de deuses, exortando os japoneses a “suportar o insuportável”.
Mesmo assim, soldados leais ao Imperador continuaram a lutar na China e nas Filipinas até 1948, por uma rivalidade étnica histórica. Shoichi Yokoi esteve em guerra de 1941 a 1972, quando foi descoberto isolado na ilha de Guam; Hiroo Onoda combateu nas Filipinas até 1974 e só se rendeu quando o governo japonês conseguiu localizar um antigo oficial de Onoda ainda vivo para ordenar-lhe que depusesse as armas [em bom estado e com munição].
Esses soldados sabiam que o Japão perdera a Guerra, mas a sua honra os impeliam a continuar. No Brasil os imigrantes japoneses e descendentes também, só que com a diferença de que aqui poucos na comunidade nipônica sabiam da derrota do Japão.
As raízes desse desconhecimento são um dos temas do livro de Rogério Dezem, que oferece a visão da polícia política brasileira quanto à Shindo-Renmei [Liga do Caminho dos Súditos]. A Shindo-Renmei era uma organização que pregava a vitória do Japão na Guerra e seus membros eram chamados de kachigumi. O grupo mais radical que promovia as sabotagens e ataques era conhecido como tokko-tai [batalhão do vento divino].
Os alvos da Shindo Renmei eram outros japoneses que declaravam que o Japão fôra derrotado e o Imperador, rendido. Esses ficaram conhecidos como makegumi ou “corações sujos”.
O livro
O livro Corações Sujos, do escritor Fernando Morais e lançado no mesmo ano pela Companhia das Letras, é uma boa leitura de introdução ao tema, mas é muito, como direi… “Memórias de Uma Gueixa” demais. Ele entrevistou membros da comunidade japonesa dispostos a falar sobre um assunto tabu, o que é um grande mérito, só que a visão dele ainda é o da pessoa que não entende as diferenças culturais e psicológicas primeiro do estrangeiro, e principalmente do imigrante, por mais que tente ser imparcial.
Já o livro de Rogério Dezem analisa a política racista implementada no Brasil desde a época do Segundo Império e agravada pela Constituição Federal de 1934 para promover a purificação [branqueamento] da raça brasileira. Essa política xenófoba pretendia tornar a vida dos imigrantes tão difícil que eles prefeririam ir embora, ao mesmo tempo em que praticamente impossibilitava a entrada de novas levas não apenas de japoneses, mas de todas as outras etnias não-nórdicas.
A colônia japonesa foi a mais afetada porque era a maior colônia de imigrantes na época. Até o Estado-Novo, entretanto, os japoneses não formavam uma “colônia”: havia rivalidades e preconceitos entre gerações e entre nativos de diferentes partes do Japão. Foi a repressão política de Vargas que acabou unindo os japoneses – mais irônico ainda, foi a repressão que forneceu o ambiente ideal para que a Shindo-Renmei pudesse se expandir e obter sucesso na disseminação de boatos!
As escolas, igrejas e clubes japoneses foram fechados; livros e jornais apreendidos e impedidos de circular; aparelhos de rádio de onda curta [que sintonizavam as estações do Japão, como a NHK] apreendidos e lacrados. Era proibido que dois japoneses se reunissem. Isolados no interior, muitos sem saber ler ou falar/ouvir português, oprimidos, era fácil manipular o sentimento da revolta e da saudade de casa nessa situação.
"Nesse mesmo relatório, encontramos várias descrições de fatos que, para a polícia, se prestavam para legitimar as ideias e os estereótipos veiculados na época. Ao descrever os rituais budistas praticados nos cemitérios em homenagem aos familiares mortos na cidade de Bastos, Louseira Rocha considera os japoneses “ingênuos” ao acreditar que as oferendas (comidas, moedas, lembranças) depositadas nos túmulos dos mortos poderiam ser “recolhidas” por eles, sendo prova disso seu “desaparecimento” no jazigo. Na realidade, conclui Louseira, as oferendas eram ”roubadas” pelas crianças brasileiras, que já sabiam desse hábito e que, por uma justa razão, necessitavam dos “apetitosos manjares e de tão reluzentes moedas” muito mais do que os defuntos. O Delegado conclui alegando que a garotada, ao raciocinar e agir dessa forma, “à moda brasileira”, era mais esperta que os japoneses. Essa falta de consideração por certos aspectos da cultura japonesa nos comprova que a maioria das autoridades policiais no interior de São Paulo não tinha a formação necessária para julgar fatos dessa categoria. [p. 45]"
Além da política oficial racista do governo [ou talvez por causa dela, ja que no Estado-Novo a mídia seguia as diretrizes oficiais], havia um forte movimento anti-nipônico na imprensa e na mídia em geral, motivado pelo temor de que os japoneses tentassem dominar o Brasil – a chamada “ameaça amarela”. Rogério Dezem cita esse movimento no livro mas desenvolve melhor o tema em Matizes do amarelo: a gênese dos discursos antiorientais no Brasil.
Já a segunda metade do livro contém as fichas do Deops propriamente ditas, relações de fotos, pastas e recortes, índice remissivo e bibliografia. Assim como Fernando Morais, o autor não esgota o tema. Não há, por exemplo, uma análise que permita conjeturar sobre os motivos dos boatos vitoristas, as motivações dos líderes da Shindo Renmei: econômicos, sociológicos, psicológicos?
Como essa não é a proposta do livro, não chega a ser um defeito, só é um pouco frustrante.
O exemplar
Este foi o primeiro livro que retirei na biblioteca municipal depois de pelo menos dez anos. Ao olhar na ficha de controle tive uma surpresa: fui a primeira. Não é que a ficha anterior tenha sido toda preenchida e substituída, porque o livro só tem marca de passagem do tempo [bordas amareladas] e não de manuseio. Por que a surpresa? O livro conta parte da história da própria cidade, que foi a segunda maior em membros da Shindo Renmei. O povo adora se ver em coluna social, tem uma autoimagem bem nutrida, mas não conhece seu passado.
Não é um passado bonito, é verdade, nem para os japoneses nem para os brasileiros. Essa noção de que o Brasil sempre recebeu todos os imigrantes de braços abertos, de país multiétnico e multicultural é história bem recente e contada pelo ponto de vista dos vencedores, como sempre.