spoiler visualizarStephane.Grizafis 09/05/2024
Quanto precisa olhar pro abismo para ele nos olhar de volta?
Um livro que, mesmo após tantos anos, continua sendo relevante.
Iniciei a leitura com muitas expectativas, apesar de já ter assistido ao filme - e por isso, já sabia o plot - porém Chuck conseguiu superar todas elas. Mesmo para quem já assistiu o filme, deve ler o livro sem medo da experiência se tornar redundante. O livro é uma experiência única, porque o modo como a história é apresentada através desse formato se torna ainda mais profunda e visceral. Palahniuk não somente narra os fatos, mas nos faz entrar na mente do personagem, e com isso quero dizer ter uma experiência de imersão da complexidade dos sentimentos do protagonista que infelizmente não pode ser alcançada somente assistindo o filme. Chuck - através do ponto de vista do narrador - é sagaz, cínico, inteligente e irreverente, e nos mostra com maestria cada passo da decadência do protagonista.
Além disso, Chuck demonstra sua genialidade quando usa recursos narrativos friamente calculados para nos fazer sentir exatamente como o personagem. Chuck usa muitas vezes a palavra ?Você? no início de frases de ação para que nos coloquemos no lugar do narrador, como se nós mesmo estivéssemos executando aquela ação ou tendo aquele sentimento. Chuck também usa muitas alegorias para dar dicas sobre o plot ou para passar uma mensagem subliminar como quando fala sobre a rotina de projetista de Tyler, que pode parecer enfodonha e sem sentido, somente para ?despretenciosamente? dizer que os rolos de projeção são trocados várias vezes durante o filme e a plateia nunca percebe(uma analogia à troca de consciência entre as personalidades que o narrador faz e que não percebemos) ou quando cita o poema de Ozymandias, uma metáfora sobre a ruína de tudo que o protagonista criou e que estava sendo destruído diante de seus olhos naquele momento. Palahniuk também utiliza outros recursos narrativos como a não utilização de aspas ou travessão em muitas partes do texto em que o personagem dialoga com outros, a fim de não só demonstrar, mas nos fazer imaginar perfeitamente a mente do protagonista dissociando a todo o momento. Esses e outros detalhes mostraram pra mim como Chuck Palahniuk é um escritor genial e que a obra não teria o mesmo peso se não tivesse sido escrita da forma como foi, pelas mãos dele.
Dito isso, falando sobre a história em si, eu achei incrível: além de abordar questões óbvias sobre capitalismo e consumismo - mesmo que seja através da hipocrisia inevitável de um produto(livro) que foi popularizado e, consequentemente, muito comercializado - Clube da Luta também mostra como a masculinidade tóxica pode ser maléfica para os próprios homens, que se concentram em alcançar esse ideal estético e comportamental para serem aceitos dentro de seus meios (afinal, por que somente Tyler, forte, bonito e carismático era ouvido e levado a sério?).
Porém, para além das críticas sociais que o livro aborda, a decadência mental do protagonista que está inextrincávelmente relacionada a elas é explorada de forma contundente. O narrador é um homem medíocre inserido em um sistema explorador e alienador assim como nós, mas que ainda mantém um senso de inconformidade. Para fugir de sua própria realidade miserável, frequenta grupos de apoio onde é acolhido, mesmo que não tenha nenhuma enfermidade. Porém, tudo desanda quando ele encontra outra ?turista? como ele, e isso o faz buscar outra válvula de escape. Daí surge a ideia da violência, pois além desta reafirmar a masculinidade dos homens, a dor física resultante pode ser entendida como uma tentativa de encontrar algum sentido tangível em estar vivo: pessoas que se colocam em situações extremas de autodestruição como pessoas alcoólatras, viciadas em drogas ou que se automutilam fazem isso na tentativa de ser aproximarem tanto quanto possível da morte sem de fato morrer, a fim de que, na iminência dela encontrem valor na vida, assim como o próprio livro cita quando Tyler e o narrador se batem pela primeira vez ?[?]chegamos a um lugar onde nunca estivemos e, como o gato e o rato dos desenhos, ainda estamos vivos e queremos ver até onde podemos ir com isso e ainda continuar vivos.?
A partir daí, o narrador irá ser completamente influenciado por Tyler, que é extremamente persuasivo e não se detém de usar esses artifícios para convencer o protagonista de sua própria ideologia. Independentemente se você gosta do Tyler ou não, é inegável que ele é um personagem muito bem escrito. Não tem como permanecer indiferente à ele. Considerando isso, a partir daí o protagonista irá assumir um comportamento leviano e até inconsequente, influenciado por Tyler, criando o clube. O clube da luta é a concretização da inconformidade com as normas sociais que o narrador nunca apoiou; se ancorando sob a justificativa de que esse sistema é injusto(e de fato é) e a maioria das pessoas que fazem a manutenção dele são dissimuladas. Além disso, também é impulsionado por sua mente que se encontra em declínio exponencial - sendo personificada através de Tyler.
Sobre isso, é muito interessante ver como Chuck foi inteligente ao criar essa obra, pois mostra o dilema do protagonista entre as diferentes partes de sua personalidade se analisarmos conforme a psicanálise de Freud. Nesse raciocínio, Tyler é o ID, e o narrador é o ego e superego, e isso é explorado de maneira excelente. Tyler é tudo que o protagonista deseja ser em seu inconsciente: forte, corajoso, bonito, inteligente e LIVRE, mas também é impulsivo e inconsequente, não refreando seus instintos naturais. Por outro lado, o narrador ao desempenhar o papel de ego, tenta coordenar esses instintos do ID, analisando se são palpáveis ou inviáveis, para que as ações permaneçam em consonância com a realidade. Já ao desempenhar o papel de superego, o protagonista precisa auto-observar suas ações e analisar se estão de acordo com o código moral ou se ultrapassam seus valores.
Isso é muito nítido em grande parte da narrativa onde o autor mostra a dissonância de ideias do personagem, onde o mesmo se contradiz em muitos momentos, ou tem atitudes incongruentes resultantes do adoecimento mental. Essa perda de sanidade mental vai se intensificando cada vez mais ao longo do livro, de maneira bem justificada, mas não óbvia, nem repentina, o que traz mais credibilidade e profundidade à história. Podemos ver claramente os passos que o narrador dá em direção ao abismo: os grupos de apoio, como escape através do acolhimento, o Clube da Luta, como extrapolação da violência como ferramenta para lidar com a própria miséria, o Projeto de Desordem e Destruição como expansão dessa loucura através do desprendimento moral que este promove, e o anarquismo do PDD, que é o último passo do protagonista ao declínio, onde já encarou demais o abismo e foi olhado de volta, pois ali ele já havia abandonado os próprios valores tornando-se aquilo que abominava.
Sobre o ultimo tópico, é interessante ressaltar que o ID Tyler consumiu a personalidade do protagonista quase em sua totalidade nesse momento da história. Mais uma vez, isso é excelentemente bem narrado por Chuck ao descrever a guerra que se inicia entre o ID Tyler e o protagonista quando o mesmo descobre que ambos são a mesma pessoa. Naquele momento, o ID Tyler estava tomando a maior parte das decisões, levando o PDD a um outro patamar, e tornando-se um líder autoritarista que não aceitava perguntas, nem questionamentos de qualquer natureza. Todos que se opusessem, eram expulsos ou ameaçados, incluindo o próprio narrador. Dessa forma, o protagonista precisa reunir as forças que o restante de sua sanidade o deixou para tentar suprimir o ID Tyler e corrigir suas cagadas. Porém, a partir desse momento, o narrador percebe que o Clube da Luta e o Projeto de Desordem e Destruição não dependem mais do ID Tyler, pois estes se tornaram ideologias enraizadas na mente dos integrantes, tão alienados a ponto de fazerem tudo pelo seu ideal, e como ?V de Vendetta? já nos ensinou ?ideias são a prova de balas? portanto, não importava se o próprio protagonista decidisse fechar os clubes, revogar ordens, ou sabotar os planos do Clube/PDD, NADA os faria mudar de ideia ou parar suas práticas indiscriminadas.
Assim, o protagonista se vê sem alternativas, ele precisa acabar com algo que outra parte da personalidade dele criou e ele não concorda enquanto tenta não ficar maluco de vez; já é difícil tentar ?arrumar? nossa cabeça quando estamos mentalmente adoecidos, mas tentar reverter uma organização anarquista inteira da qual você não tem mais controle, enquanto luta para não cair no sono e acabar piorando a situação é um pesadelo.
Resultado: não conseguiu. Obviamente, um homem contra vários não teria nenhuma chance e o personagem acaba no chão ensanguentado, com a língua decepada enquanto chora e tem dissociações lembrando do poema ?Ozymandias?. Assim como diz o poema ?[?]nada mais resta; em redor a decadência
Daquele destroço colossal, sem limite e vazio?
Assim, o protagonista é obrigado a ir até o topo do prédio e temos a icônica cena final. Alguns acham que ele morre, outros que ele sobrevive e o capítulo 30 é uma analogia para um presídio ou sanatório. Como sei que tem uma breve continuação em formado de HQ, imagino que seria a última opção a correta, mas quando li achei que ele tivesse morrido e aquela seria uma alucinação de seus últimos momentos. Mas de todo modo, fico feliz com o final, só espero que ele se trate.
A história é uma obra-prima, não só pela maestria já reverenciada da escrita de Palahniuk, mas também por todas as críticas sociais abordadas e reflexões profundas sobre moralidade e degradação da mente que o mesmo propõe através da narrativa da relação complexa entre personagens ambíguos e cativantes, nos fazendo questionar qual o limiar entre se rebelar contra o status quo e conservar a sanidade corrompida que ainda nos resta.
Não tenho nenhuma ressalva sobre esse livro, ele é simplesmente perfeito.
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