Luis 12/01/2018
Bendito fruto do ventre
Se eu tivesse conhecimento e competência para entender o que é um romance de formação, talvez assim classificaria “O Ventre”, a obra inaugural de Carlos Heitor Cony.
Publicado em 1958, e considerado “forte” para a época, o livro trata dos dilemas do jovem Severo, primogênito de sua família e que tem uma relação difícil com o pai e competitiva com o irmão, seu quase antagonista, diferente em praticamente tudo em termos de personalidade e visão de mundo. Para acentuar ainda mais essa dualidade, ambos são apaixonados por Helena, uma adolescente com um “quê” de Capitu, misto de inocência e sensualidade.
Ao longo do romance, a relação tensa entre Severo e o pai é temperada pela suspeita alimentada pela origem do protagonista, fato revelado de forma enviesada, por meio de uma confissão de sua mãe em seu leito de morte. Esse episódio reforça a sensação de que o mote do livro parece ser a tendência do personagem estar sempre envolvido com o que julga de o “ventre errado”, o que é constatado não só por ser um bastardo, mas ainda por duas outras passagens : Severo ao ser enviado para um internato, se junta a uma turma de garotos que escapa do colégio para se entregar aos caprichos de uma senhora casada, esposa de um militar, que passava as tardes solitária. Um dia, o marido ultrajado descobre um casquete com um brasão escolar esquecido embaixo da cama do casal, imediatamente “cai a ficha” sobre o adultério da mulher e vai até o colégio pedir explicações. Pelas iniciais gravadas no casquete, descobre tratar-se de Severo. O interrogatório envolvendo o aluno, o Diretor da escola e o militar raivoso muito provavelmente é o ponto alto do livro, principalmente, o diálogo que segue à revelação de que a esposa adúltera estava grávida.
Uma outra alusão ao “ventre errado” se dá quase ao final da trama, quando Severo atendendo a um pedido do irmão que segue em longa viagem de estudos, assume a missão de zelar pela cunhada, a idealizada Helena. Com a ausência do marido, Helena também cai em tentação, mas não com Severo que, embora apaixonado, não tem relações com a mulher do irmão. Desse novo adultério (o terceiro até aqui) também será gerado um novo fruto. Como se vê, o ventre, em suas diferentes encarnações , é o verdadeiro protagonista da história.
Embora, em minha opinião, não seja uma obra da mesma estatura de “Quase Memória” (1995); “Pessach-A travessia” (1967) ou o genial “Pilatos” (1974), “O Ventre” é título de destaque na bibliografia do autor carioca, tendo sido bem recebido pela crítica e reeditado com bastante regularidade, a mais recente, em 2017, pela Nova Fronteira.
Há poucos dias, Cony nos deixou órfãos de sua pena ímpar. Merecidamente vem sendo saudado como um dos nossos gigantes literários (segundo alguns especialistas, era uma possibilidade real de Nobel) tão marcante na ficção quanto no jornalismo. Difícil concluir onde tenha sido mais brilhante. O fato é que nosso herói retornou ao Ventre, do qual foi bendito e talentoso fruto.