Paulo.Incott 22/02/2017
Sociedade de Risco - Becker
Se na alvorada do Séc XX o elemento central em torno do qual a sociedade foi pensada, repensada e discutida era “o capital”, no alvorecer do Séc XXI o elemento fundamental sobre o qual as considerações sociológicas, econômicas e políticas precisam se voltar é o MEDO.
É a partir desta conclusão que Ulrich Beck constrói, em “Sociedade de Risco - Rumo a uma outra modernidade” uma explanação muito rica acerca das mudanças na passagem da Modernidade Clássica para Modernidade Tardia, Pós-Modernidade ou algo que ainda sequer conseguimos preencher com um significante.
Conceitos fundamentais são analisados por Beck para descrever as angústias e desvelar o sentido das mudanças ocorridas desde a segunda metade do Séc XX. Um primeiro destes é o próprio conceito de “riscos” - o efeito equalizador que estes possuem no desenvolvimento frenético que a ciência e a tecnologia produziram na sociedade do pós-guerra, em especial no Ocidente. A expansão dos riscos, sua fluidez e a falta de preparo para lidar com eles acaba por neutralizar as ações que deveriam contê-los.
“Quando tudo se converte em ameaça, de cera forma nada mais é perigoso” (p. 43).
Ao mesmo tempo riscos passam a ser fonte de lucro e elemento de manobra política, sem no entanto serem honestamente confrontados e sem que se assuma a responsabilidade de se apurar qual o futuro que realmente pretendemos construir.
“A indústria química produz resíduos tóxicos. O que fazer com eles? “Soluções”: aterros. Com a consequência: o problema do lixo vira um problema de mananciais. A partir dele, a indústria química e outras indústrias lucram através de “aditivos purificadores” para água potável. Quando a água potável começa a prejudicar a saúde das pessoas por conta desses aditivos, haverá medicamentos à disposição, cujos “efeitos colaterais latentes” poderão ser ao mesmo tempo contidos e prorrogados por um elaborado sistema de assistência médica. Surgem dessa forma séries de solução-geração de problemas, que invariavelmente confirmam a “fábula” dos efeitos colaterais imprevistos.” (p. 271)
Outro conceito que passa por transformações paradoxais na visão de Beck é o de família. A destradicionalização da família impacta em todas as esferas, produzindo e sofrendo os efeitos do que o autor chama de “modernidade reflexiva”.
“A família tende a tornar-se um malabarismo constante com desgastantes ambições de multiplicação entre demandas profissionais, obrigações educacionais, cuidados com as crianças e a monotonia do trabalho doméstico. Surge o modelo de família negociada a longo prazo, na qual posições individuais autonomizadas assumem, até nova ordem, um controverso acordo de metas para regular o intercâmbio emocional” (p. 115)
Na esfera político-econômica Beck observa, nas sociedades de capitalismo avançado, em que o Estado de Bem-Estar Social experimentou seu desenvolvimento mais significativo no pós-guerra (o parâmetro é a Alemanha) uma superação do dogma marxista de sociedade de classes para enxergar uma sociedade centrada no conceito de INDIVIDUALIZAÇÃO, também abordada no capítulo destinado à destradicionalização da família.
O autor relaciona a elevação do padrão de vida nestas sociedades a uma tendência de centramento na AUTORREALIZAÇÃO. Ele demonstra como a elevação do padrão social não significa de forma definitiva a eliminação das desigualdades, mas sim um efeito cosmético-simbólico que disfarça os efeitos das desigualdades, voltando a atenção daqueles que estariam propensos a se engajar no combate a estas diferenças para a efetivação de oportunidades individuais tornadas possíveis por esta elevação, perpetuando as desigualdades. Comentando os efeitos do processo de individualização, o autor descreve de forma interessante o impacto deste sobre o estilo de vida e a aventura de experimentação da autorrealização a que as pessoas se lançam:
“Na busca por autorrealização as pessoas seguem os catálogos de turismo até os cantos mais remotos da Terra. Desfazem os melhores casamentos. Fazem-se reciclar. Jejuam. Correm. Passam de um grupo de terapia a outro. Possuídos pelo desejo de autorrealização, arrancam-se a si mesmo da terra para comprovar se suas raízes são realmente sadias" (p.145)
Ainda dentro das conclusões acerca deste modelo “superindividualizatório” de elaboração de vida o autor tece comentários intrigantes sobre a influência dos meios de comunicação em massa e entretenimento, com impacto no consumo em massa e na padronização dos gostos e valores úteis aos que podem operar nestes meios. O resultado acaba por reforçar a tendência de individualização.
“Os filhos já não conhecem as circunstâncias de vida dos pais, para não mencionar a dos avós. Isto é, os horizontes temporais da percepção da vida são cada vez mais estreitos, até o limite da história reduzida ao presente (perpétuo) e tudo girando em torno do eixo do próprio ego, da própria vida….. surgem módulos pré-fabricados de possibilidades combinatórias de natureza biográfica.” (p. 199)
DEMOCRACIA e CIÊNCIA (epistemologia e auditoria de resultados) são ainda dois outros temas sobriamente abordados na obra, mas acredito que um ponto superlativo que precisa ser destacado nesta resenha é a análise do elemento PROGRESSO e seu significado para a sociedade do risco.
“Progresso pode ser compreendido como uma transformação legítima da sociedade sem legitimação político-democrática. A fé no progresso substitui o escrutínio. E mais: ele é um substitutivo para os questionamentos, uma espécie de consenso prévio sobre metas e resultados que permanecem desconhecidos e indefinidos. Progresso é a tábula rasa assumida como programa político diante da qual se exige uma aceitação global, como se tratasse do caminho a ser seguido na Terra rumo ao paraíso celestial. As exigências fundamentais da democracia são viradas de cabeça para baixo no modelo do progresso…Fica aí evidente a contramodernidade da fé no progresso. Ela é uma espécie de religião temporal da modernidade. Veem-se nela todos os sinais da fé religiosa: a crença no desconhecido, no invisível, no intangível…..em lugar de Deus e da Igreja, entram em cena as forças produtivas e aqueles que desenvolvem e administram - a ciência e a economia.”(pp. 314-315)
A leitura da obra de Beck é fundamental para compreensão do modo como política, economia, sub-política, ciência e os meios de comunicação afetam o desenvolvimento dos estilos de vida, relações e metas na sociedade de risco. A proposta do autor diante do cenário apresentado envolve principalmente uma ampliação e transformação qualitativa da participação da sociedade civil na esfera de decisões acerca das políticas que administram (e reduzem?) os riscos da modernidade. Vale a leitura cuidadosa para compreender de modo aprofundado o apurado diagnóstico realizado por Ulrich Beck!