Luigi.Schinzari 24/01/2021
Sobre Doutor Jivago, de Boris Pasternak:
A ficção histórica é um prato cheio para os admiradores da boa literatura. Alguns de seus grandes expoentes como Guerra e Paz, Educação Sentimental e Vida e Destino -- para ficarmos apenas em alguns -- são verdadeiras experiências de como se narrar a vida de personagens interessantes e seus conflitos em meio a eventos marcantes de nosso passado; acredito que o elemento histórico ressalta opiniões, caráteres, crenças e todo o pensamento das pessoas retratadas nesses livros, sendo um pano de fundo marcante para trabalhar um romance que visa retratar um período e as mentes ali criadas e desenvolvidas, além do momento escolhido ser esmiuçado para o leitor curioso por história. Doutor Jivago, romance de 1957 escrito por Boris Pasternak (1890-1960), vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1958, sem dúvidas é um dos melhores exemplos de romance histórico, pois, perpassando por todo um panorama vasto da história da Rússia, de 1905, em seu Domingo Sangrento e o burburinho revolucionário, até a tensão entre a já União Soviética e a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial, bem no calor fértil que a Rússia proporcionava naqueles anos, encontra tramas e personagens fortes, carregadas e ligadas pelo protagonista homônimo do título, Iúri Andréievitch Jivago, um médico, vivenciando tudo em tempo real.
Acompanhamos Jivago desde sua infância ao lado do tio Nikolai, logo após o falecimento de sua mãe, e o vemos deixar a inocência de sua infância junto aos amigos para um adolescência espirituosa e de traços intelectuais até se formar em medicina e se enveredar para os grandes autores de seu país -- amplamente discutidas aqui e acolá durante a obra --, tendo contato com nomes como Tchekhov, Tolstói e Púchkin; junto ao conhecimento e a medicina, Jivago nutre paixões ao longo do romance, passando entre o amor matrimonial até o adultério mais angustiante para si mesmo, homem já formado e com uma família para criar nesse ponto do livro. Toda sua história é influenciada diretamente pelos acontecimentos da Revolução de 1917 e seus antecedentes e, principalmente, suas terríveis consequências, moldando o caráter dele, antes crente nas boas-novas que o governo bolchevique traria a Rússia, e, com o desenvolver da narrativa e as barbaridades ocorridas ao seu redor, sua desilusão com os ideais comunista e o novo Estado soviético.
Pasternak preenche sua obra com dezenas de personagens, guiando Jivago de um evento a outro, tornado o livro inesgotável e cíclico: há idas e retornos, tanto para os locais visitados -- Moscou e a fictícia Varíkno, as principais localidades do romance e eternos pontos de volta e de partida de Jivago e seus conhecidos -- quanto para personagens, sempre cruzando com ele e deixando-o (ou sendo deixado) repentinamente, apenas para voltar em algum momento necessário para a grande história que está sendo traçada. Nas mãos de um autor menos hábil, as coincidências impostas ao leitor e sua boa-fé e senso de descrença seriam um incômodo, mas, nas mãos de Pasternak, torna-se um elemento a ser analisado de forma minuciosa e necessário para a trama, eximindo-se de qualquer culpa seja por sua trama envolvente, seja pela narração que sempre nos lembra do acaso e do destino.
O contexto histórico, por sua vez, é o que distingue essa de outras grandes obras. Doutor Jivago consegue retratar de forma fidedigna e aprofundada os sentimentos populares entorno dos acontecimentos turbulentos da primeira metade do século XX na Rússia. A revolução, antes encarada como algo benéfico, começa a dar seus tons autoritários logo após a tomada do poder, e seus reflexos estão claros ao longo de todo romance com os conflitos ouvidos por uma personagem, o deslocamento forçado de uma capital para o interior por conta de rumores sobre perseguição -- os acontecimentos históricos que cercam Jivago nunca assumem o protagonismo da história, apenas estão lá, encarando-o e nos vislumbrando, influenciando sua vida, mas nunca posta como um estandarte. Não vemos Lênin, Nikolai II, Stálin, Trotsky, mas estamos ali com o pequeno proprietário, o médico, as crianças, acompanhando os mandos e desmandos daqueles que, independente de suas crenças, tornam a vida de seus cidadãos mais difíceis, e é a muito custo que essa realidade começa a se fixar na mente do antes crente Jivago e de muitos ao seu redor, todos desiludidos com o comunismo, antes tão promissor e redentor, agora tão despótico e cruel quanto a monarquia Romanov.
E é nesse contexto, campo fértil para momentos de desgraça -- exploradas muito bem pelo autor --, que Pasternak apresenta uma espécie de respiro com exemplos de amor puro, de apego a sentimentos nobres, a paixão pela boa cultura e a esperança de um futuro melhor inquebrantável. Saber trabalhar episódios trágicos de morte e devastação, vastos no livro, aliado a descrições de elevação do homem e de seu espírito por conta da beleza, do amor e da arte -- discute-se até mesmo a questão imposta por Dostoiévski em O Idiota sobre a salvação do mundo --, é, acredito, a maior qualidade de Doutor Jivago. A pena de Pasternak sabe dosar perfeitamente as doses entre o horror e o belo, e sem dúvidas em Doutor Jivago tal conflito, assim como o choque entre ideias, cidades e personagens, como já citei previamente, é basal para a estrutura do romance histórico apresentado. Ao contrário do que pode se pensar, Doutor Jivago não é épico por conta de seus acontecimentos grandiloquentes, mas sim por tecer tão bem uma história íntima contornada e levada por eventos que fogem ao nosso controle, aliada a uma escrita refinada e reflexões profundas sobre o homem e sua história.