spoiler visualizarJeff_Rodrigo 29/08/2024
Alguma vez você já parou para pensar o quanto as condições materiais no entorno de alguém é capaz de moldar o seu modo de encarar a vida? O quanto a dinâmica social no qual esse ser está inserido é capaz de influenciar a sua cosmovisão de mundo? Que essas coisas, impostas, ao negarem a essência do seu ser não só o brutaliza como também o objetifica? De que esse ser, cego pela objetificação, se torna escravo das condições que lhes são impostas, incapaz de reagir?
É incrível pensar essas coisas ao ler esse clássico do Jack London. Nesse livro, lançado em 1906, acompanhamos a saga de Caninos Brancos, um híbrido entre cão e lobo nascido em Yukon, norte do Canadá. A história se passa em um ambiente frio e hostil, durante o período conhecido como a "Corrida do Ouro de Klondike", na região entre o norte do Canadá e o Alaska, no final do século XIX. Narrado de forma magnífica, o autor consegue apresentar bem não só os detalhes das aventuras e apuros que o nosso protagonista vive, como também os sentimentos e pensamentos que esse tem diante das diversas situações que o destino lhe reserva.
O livro começa apresentando o mundo a partir da perspectiva de Kichie, a mãe de nosso herói. Meio loba e meio cão, ela estava foragida da tribo indígena da qual pertencia, vivendo em meio a uma matilha de lobos. Prenha, ela dá a luz à Caninos Brancos. Assim, nessa primeira parte da história acompanhamos o modo de vida e os costumes dos lobos, assistindo, inclusive, a perseguição da matilha a dois viajantes que estavam em apuros em meio à floresta. Logo em seguida, assistimos os primeiros passos de nosso protagonista em meio à natureza, com seus vislumbres e curiosidades perante a beleza e a imensidão do mundo.
Porém, de forma repentina, somos pegos de surpresa por uma série de acontecimentos dignos de uma tragédia grega - ou de um castigo no inferno. Ao reencontrar Kichie, Castor Cinzento, membro da a tribo a qual ela pertencia, leva a mãe e o seu filhote consigo. Vivendo em meio aos homens, Caninos Brancos vai aprendendo que esses seres são capazes de criar dor e conforto de forma rápida e assustadora. Por ser um selvagem, ele não consegue se dar bem com os outros cães da tribo, sendo acossado, maltratado, perseguido e espancado a todo momento. Já os humanos da tribo o veem como um ser perigoso, instável, não confiável. Logo, de tanto se defender, Caninos Brancos se torna agressivo e temido por sua opulência e ferocidade. Ao mesmo tempo, ele perde quase que completamente a capacidade de viver livre - fato comprovado pelo episódio de quando ele foge e, já livre, não consegue viver na floresta.
Para piorar, o seu dono, o índio Castor Cinzento, após perder muito dinheiro em bebidas e apostas, resolve vender Caninos Brancos para um homem de carácter muito mais ruim, Beleza Smith. Nosso protagonista, então, é forçado a lutar em rinhas de apostas, em meio a lutas sangrentas que quase o levam ao encontro da morte. Para sobreviver em meio ao jogo dos homens, se torna uma máquina de matar. Esse período de violência dura muito tempo. Traz muitas feridas dentro e fora de nosso herói, que acaba achando que a vida se resume a destruir e a matar. De tanto cansaço e sofrimento, durante uma luta em que estava quase perdendo a vida, ele é resgatado por um outro homem que se compadece de sua situação, Weedon Scott.
Sob os cuidados de Scott, Caninos Brancos conhece uma nova fase. Um novo mundo. Um universo guiado pelo amor incondicional de Scott, ávido em transformar o seu novo amigo em um ser livre de todo o ódio e rancor que lhe causaram. Pouco a pouco, nosso herói vai se transformando, mudando as suas perspectivas sobre os humanos e a vida.
Doido pensar nesses diferentes momentos da vida de Caninos Brancos. Há quem goste de apontar o sentido inverso que essa história toma em relação à outra obra clássica de London, "O Chamado da Floresta", de 1903. Em mim, porém, outra percepção ficou mais pungente. Notei que no primeiro momento, ainda que breve, nosso herói se encontra livre, sujeito apenas às imposições do meio natural, lutando por si mesmo. No segundo, já na tribo, além de estar sujeito às tarefas e trabalhos alheios às suas vontades, pouco a pouco a sua identidade lhe é retirada, se transformando num ser negado e negligenciado conforme o peso da sua potencialidade destrutiva ou laboral. No terceiro, ele se transforma num objeto, numa simples mercadoria, útil só até o momento em que seu corpo aguentar. No último, temos uma transmutação, guiada por um ideal que vai muito além da mera acumulação material, e que realmente dá um sentido a vida sofrida de nosso herói.
Lembrei dos cachorros que já me morderam. Dos que encontrei por aí. Dos que tenho e já tive.