Candice 23/09/2018
Clássico poético-selvagem
O livro tem rompantes poéticos excepcionais em um mundo onde prevalece o irracional - com racionais em volta, claro, mas o predomínio da narrativa é o meio animal, selvagem. Em que não se pensa; se sente. E digo estilo poético não especificamente na descrição dos elementos da natureza, mas principalmente nas emoções de Caninos, esse animal que é mistura de cachorro e lobo.
O autor consegue colocar em equivalência o pensar (racional) e o sentir (irracional). Por exemplo, Caninos não sabia explicar por que agia de tal forma, ele não elaborava um pensamento sobre alguma coisa, ele só sentia que devia agir assim ou assado - porque aprendeu a reagir baseado em suas experiências, instinto e inteligência. Equivalência porque o autor não coloca o homem em patamar superior por pensar. Ele mostra que o lobo está "sentindo isso" porque não consegue pensar, é a forma dele de construir as referências que moldarão suas atitudes. Pense no autor explicando para o humano: “Esse seu pensar aí, ó, o lobo também está de acordo, só que chegou no mesmo entendimento por vias diferentes de aprendizado" - ele não tem compreensão do todo, mas ele sabe o que pode e o que não pode, o que deve e o que não deve, o que esperam dele, o que é considerado cruel, bondoso, errado, fora da lei etc.
Por mais que comportamentos, lembranças ou mesmo características da natureza dele insistiam em ficar, ele era totalmente adaptável ao meio. Depois que ele decidiu servir a um deus, ser dependente do homem (era cachorro e lobo ao mesmo tempo), ele seria fiel independentemente da situação. Se fosse pra ser cão de briga, ele seria, carregaria este peso e serviria ao dono - com a dor e o sofrimento dentro dele, mas aceitaria a condição, pois viveria dignamente seja lá qual fosse o seu destino.
A ambientação da natureza tem um poder descritivo na medida, sem excessos. O livro já começa nessa inserção narrativa, o que nos move (melhor: nos joga) pra dentro da cena aos poucos - quando vê está lá imerso e entregue à história.
O primeiro parágrafo é primoroso em estilo, e de uma beleza… Falando nele, depois que a leitura acaba, parando pra pensar em toda a trama e relendo o início, achei genial a escolha da abertura. Mostrar a aventura de viajantes trilhando o mundo selvagem gélido dá pra contar e enriquecer muito mais os assuntos que vão estar presentes nas próximas páginas (fome, instinto, perspicácia, natureza, comportamento).
Os acontecimentos são verossímeis e te convencem. Isso vem do domínio do autor em apresentar as situações e emoções dos personagens. O viajante Henry, por exemplo, aceita seu destino resignado. O cansaço físico e mental já tinha suprido qualquer possibilidade de fuga. Quando estava no meio do círculo de chamas a sua volta ele diz: “Acho que agora vocês podem vir me pegar quando quiserem. Seja como for, eu vou é dormir”.
Acompanhamos a trajetória dele tão de perto (as noites sem dormir por causa dos lobos à espreita, as perdas que sofreu etc.), que só concordamos “isso, se entrega e descansa” porque sabemos que ele está esgotado. Também o relato das descobertas do Caninos ainda filhote é muito factível e forte. Você esquece que é um humano contando (autor) porque há uma segurança nas emoções e sensações transmitidas e também minúcia com que imagina os pormenores da vida selvagem. A primeira saída, a primeira caçada… Parece aqueles contos com moral no fim: “Ele ficou encantado com isso, foi lá e se ferrou. Logo, ele aprendeu que era melhor ser cauteloso”. Nos mostrar esses primeiros contatos reforça a natureza do animal.
Estava com certo receio de ler, achando que poderia chorar a todo instante. Mas foi suave quanto a isso. Há de fato o sofrido capítulo “O reinado do ódio”, em que o dono é Belo Smith, mas me emocionei mesmo em dois momentos devido a uma mesma situação: uivo. Uivar era sua maior demonstração de tristeza - era um choro -, e ambas as vezes foram por ações do homem. Quote do primeiro uivo: “Apontou o nariz para a lua. Sua garganta foi acometida por fortes espasmos, a boca se abriu e, num grito angustiado, ela deu voz à solidão e ao medo que sentia, à saudade que tinha de Kiche, a todas as mágoas e tristezas do passado, bem como sua apreensão com os sofrimentos e perigos que estavam por vir. Era o longo uivo dos lobos, gutural e melancólico”. Fenomenal. Os sentimentos que o acometeram são também os nossos, humanos.
O autor utiliza durante todo o livro a metáfora do barro para se referir à natureza adaptável e baseada no condicionamento. Se ele não tivesse se aproximado da fogueira dos homens, por exemplo, teria sido um lobo integralmente, de verdade, porque o mundo selvagem o teria moldado assim.
Mesmo sabendo da natureza adaptável do animal, fiquei admirada o quanto de fato ele se encaixa e se ajusta ao meio - achei que algumas poucas características seriam preservadas. Exemplo: até o ponto mais fraco dele (que o deixava fora de si e demoníaco), que era o riso do humano, quando riam dele, acabou sendo moldado pelo dono amoroso. Outro ponto também é que ele havia, ao longo de toda a história, declarado vingança eterna com todos os cachorros (devido às experiências que teve ao longo dos anos), e em dado momento passou a conviver harmoniosamente com eles.
Por isso, CONDICIONAMENTO é uma das palavras que vem mais forte à cabeça quando se pensa no comportamento e na relação homem x animal. Exemplo: quando torturado, odiava a tudo e a todos. A briga era o único modo que lhe foi dado de expressar a vida que existia dentro dele.
Página 227, dois quotes sobre:
“Já Caninos Brancos precisou fazer nada menos que uma revolução. Teve que ignorar anseios e impulsos do instinto e da razão, teve que ignorar a voz da experiência, teve que desmentir a vida em si”.
“A vida, tal como ele a conhecera, não só nunca tivera lugar para boa parte do ele fazia agora como todas as correntes fluíam no sentido oposto ao daquelas pelas quais ele agora se deixava levar. Em resumo, considerando tudo, ele precisou fazer uma adaptação muito mais ampla do que a que havia feito quando deixou voluntariamente o mundo selvagem e aceitou Castor Cinzento como dono e senhor. Na época, ainda era um filhote tenro, maleável, sem forma, pronto para começar a ser esculpido pelos dedos das circunstâncias. Mas agora era diferente. Os dedos das circunstâncias haviam feito o seu trabalho bem demais. Por meio deles, Caninos Brancos tinha tomado a forma do Lobo Guerreiro e endurecido assim, feroz e implacável, incapaz de amar e impossível de ser amado. Realizar a mudança foi como refazer sua existência, e isso quando ele não tinha mais a plasticidade da juventude; quando as suas fibras já haviam se tornado rijas e nodosas; quando os fios que se entrelaçaram para urdi-lo tinham lhe dado uma textura adamantina, áspera e inflexível; quando a feição do seu espírito se tornara ferrenha e todos os seus instintos e axiomas haviam se cristalizado em regras fixas, cautelas, aversões e desejos.
AMOR: palavra importante na história, que deve ser discutida e levada em conta.
Cheguei a me questionar algumas vezes sobre a crueldade ou não de domesticar animal selvagem que, em civilização, tem de reprimir seus instintos naturais constantemente. No caso de Caninos, penso não ter sido ruim. Por ene motivos, além de ele ser mistura de cachorro e lobo. Ele teve de abrir mão, sim, de comportamentos instintivos, mas seu lado cachorro também “deu voz” em alguns momentos. À medida que se vai acompanhando as agruras da vida de Caninos (uma vez que a escolha estava feita), toda a maldade que enfrentou e dores que sofreu, é um alento o posterior sentimento de amor, contentamento, ambiente caloroso e aconchegante. De qualquer forma, o tópico da domesticação continua com assunto e abertura.
O livro altera um pouco a percepção e o olhar que temos sobre nossos pets. Falando da relação com as crianças da casa, que de início ele não gostava, depois passou a tolerar e depois até a gostar: “Era possível notar que um brilho de satisfação surgia em seus olhos quando ele as via se aproximar e que olhava para elas com ar de tristeza e curiosidade quando elas o trocavam por outras distrações”. Foi aí que fiz uma pausa e permiti me emocionar pelo Chico e pelos pouquíssimos momentos em que lhe fiz companhia, em lembrar as facetas que ele costuma utilizar para chamar atenção e conquistar a pessoa para que ela não saia da garagem. Um aperto, um arrependimento e um sentimento de culpa por já saber estar agindo não de acordo e ignorar o vozinha lá dentro. Nada como um poderoso livro para acordarmos.