Jéssica - Janelas Literárias 03/05/2017
Invertendo a parábola do filho pródigo, Lavoura Arcaica traz o protagonista André, de 17 anos, que abandona sua família, fugindo da autoridade de seu pai e da paixão que sente por sua irmã Ana, até que seu irmão mais velho, Pedro, o leva de volta para casa. ?
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O enredo aparentemente simples, de raros acontecimentos, dá espaço para que a linguagem se sobressaia. Nassar faz da escrita uma fonte inesgotável para sua lavoura, caracterizada por um acentuado lirismo e composições, minuciosamente elaboradas, de cenas quase sensoriais ou sinestésicas. ?
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A figura do pai desempenha um papel determinante e altamente simbólico na narrativa. O discurso paterno, que sempre aparece para salvaguardar as tradições e valores campestres arcaicos, como a importância do trabalho, da paciência, a negação do corpo e silenciamento das paixões. A palavra do pai é lúcida, bem empregada, proverbial e refinada. Esta rigidez ética e moral, mas também estética, confere ao pai um perfil quase inumano. ?
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André, em sensível contraste, recusa o verbo da família, sua fala é afobada, colérica e explosiva. Com sonoridade marcada, André não diz, André jorra, convulsiona. Sua prosa tem ritmo acelerado e períodos longos o que deixa o leitor sem fôlego, exausto, sem descanso até o fim do capítulo. A gente convulsiona junto, compartilha da sua ânsia e delírio. ?
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Esta polaridade nos discursos, como se pode ver, é completamente definida pelo tempo. A voz paciente e lenta do pai, ante o desespero apressado de André. Mas também é perceptível no próprio conteúdo das falas, quando Nassar contrapõe a visão do pai e filho em relação à percepção do tempo, num dos textos mais lindos que já li em toda a minha vida. ?
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A família patriarcal é simbolicamente descrita pela mesa, o lugar em que todos se sentam, e sobretudo pelo lugar em que se sentam. À direita, o galho espontâneo, forte, puro. À esquerda o tronco viciado, a cicatriz, a mãe, silenciosa mãe, que aparece na narrativa quase sem voz, é mais uma presença, um toque, um vulto. A mãe é só tato, o pai é só verbo. Tudo que André almeja é encontrar seu lugar na mesa, mais propriamente, quer a cadeira do pai. ?
Daí vem desejo de ruptura de André, que é expresso já no momento em que ele viola sua irmã, violando também a família, a tradição, a lei, numa luta contra a interdição familiar do desejo, do corpo, do sangue, da alma, enfim. Ele foge em busca de libertação para este corpo, autoconhecimento e formação de sua identidade, que é aplacada pela imposição da repetição da identidade paterna. Mas o seu destino é inevitável, não há fuga da família, "estamos indo sempre para casa".