Andreia Santana 19/05/2011
Relatos de um exílio forçado
As palavras são perigosas quando encontram quem as leia e dissemine. Ao longo das quase 300 páginas do livro de crônicas A beleza e o inferno (Ed. Bertrand do Brasil), o jornalista italiano Roberto Saviano reafirma a máxima, marcando-a com tinta preta no coração de seus fãs. É para a legião de leitores, em mais de 40 países, que o autor do bestseller Gomorra dedica essa espécie de Memórias do Cárcere contemporâneo. A diferença é que a prisão de Saviano não é a mesma cadeia para presos políticos contrários à ditadura Vargas no Brasil dos anos 30, como aconteceu com Graciliano Ramos, mas quartos de hotel onde protege-se das ameaças da Camorra.
Saviano quer permanecer vivo para escrever e denunciar o crime organizado em escala global. Gomorra, o bombástico livro de estreia, foi levado ao cinema em 2008 e virou febre mundial, vencendo inclusive o prêmio principal do Festival de Cannes, em 2009, mesmo ano em que o livro que desvenda os bastidores da máfia chegava ao Brasil, também pela Bertrand. “Foram vocês que transformaram Gomorra em um livro perigoso”, escreve Saviano na crônica onde relembra sua viagem à França, para o festival, junto com os adolescentes que no cinema vivem os jovens aprendizes do crime que o escritor descreve com um realismo brutal em seu bestseller.
Tanto o comentadíssimo Gomorra quanto este A beleza e o inferno não são obras para quem tem estômago fraco. Os dois desmistificam a máfia de Mário Puzzo. Os chefões denunciados pelo jornalista cometem atrocidades que em nada lembram o carisma de Marlon Brando ou de Al Pacino na trilogia O poderoso chefão. Aliás, depois de ler Saviano, a visão do leitor sobre a máfia e os gangsters de Nova York corre sérios riscos de perder 99% daquele glamour cinematográfico dos filmes sobre os anos 20, Al Capone, John Dillinger e Bonny & Clyde.
Para os brasileiros, algumas crônicas pecam pela falta de contexto. As escassas notas de rodapé e citações no final do livro não dão conta de explicar boa parte dos personagens (reais) citados na obra. A menos que o leitor em questão tenha acompanhado os últimos cinco anos da vida do escritor, conheça o livro ou o filme Gomorra, tenha lido seus polêmicos artigos (ele continua denunciando os crimes da máfia), ou visto as entrevistas concedidas em talk shows, alguns textos de A beleza... ficam difíceis de acompanhar.
Sem papas na língua, ora em tom revoltado, ora confessional, mas com um domínio exemplar das mesmas palavras que colocam sua vida em risco permanente, Saviano parece uma versão mais jovem de Salman Rushdie (Os versos satânicos). As histórias dos dois, inclusive, já foram comparadas, ao menos no que diz respeito a ter a cabeça posta a prêmio, um por criminosos e o outro por fundamentalistas islâmicos. Eles até se encontraram, na sede do Nobel, e o encontro virou uma das crônicas de A beleza e o inferno.
A personalidade latina e a verborragia de Roberto Saviano, inclusive, são frequentemente citadas pelos que querem desacreditar suas denúncias sob alegação de que ele não passa de um oportunista em busca de holofotes. Também tem crônica sobre isso. Ele não esconde nada, não poupa nomes.
Mas, fazendo jus ao título poético, o livro não é só o peso das ameaças ou denúncias sobre o assassinato de colegas jornalistas eliminados pela máfia, mas também traz textos líricos que versam sobre a paixão do escritor pelo cinema e até, um artigo que fará os boleiros de plantão chorarem de emoção, em que de forma quase quixotesca, Saviano biografa o jogador Leonel Messi, de quem é fã.
Para quem gosta de livros que expõem os dois lados da vida: sua mistura de crueldade e doçura, muitas vezes em desequilíbrio, é leitura recomendada.
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P.S.: Minha resenha sobre A beleza e o inferno também foi publicada no Caderno 2+, suplemento cultural do Jornal A TARDE, em Salvador-BA.