gabriel 20/06/2021
Mais uma obra-prima do mestre Machado de Assis
Talvez "obra-prima" seja exagero, é realmente um livro um tanto mais convencional (e que hoje soa um pouco antiquado), há exageros e arroubos retóricos, bem como diálogos muito pouco realistas. As pessoas falam "declamando" e a articulação da menina de 16 anos beira a inverossimilhança, mesmo para o (aparentemente, nunca vivi lá) formal século 19. Mas mesmo assim é um livro excelente!
A maneira como Machado constrói sua trama é de uma engenhosidade absurda, ao mesmo tempo com grande delicadeza e sofisticação. O mestre sabe como contar uma história de maneira a prender e a interessar o leitor, envolvendo-o durante toda a leitura. A trama é sofisticada, complexa sem ser complicada, com personagens muito bem desenvolvidos e com várias camadas sobrepostas e possibilidades de leitura. Não menos se poderia esperar do antigo morador do Cosme Velho.
Eu só não gostei muito do final, muito melodrama pra minha cabeça, e também não é indicado a diabéticos, tamanha a quantidade de açúcar que tem. Porém nunca é uma trama boba, nunca é apenas uma historinha banal, e Machado, de maneira bem esperta, sabe inserir a sua tão famosa ironia e sua desilusão frente aos sentimentos humanos. O livro tem um tom amargo bem pronunciado, como já conhecemos em outras obras do autor.
Helena é uma garota idealizada, de "dezesseis para dezessete anos" (as escolhas das idades em Machado é sempre sensacional), uma típica personagem feminina machadiana, mas aqui menos realista que as suas obras mais conhecidas (como Dom Casmurro e Memórias Póstumas, por exemplo). Ela tem aquele tom algo ardiloso que as mulheres do Machado muitas vezes tem, aqui um pouco diluído pela idealização, mas ainda assim muito presente.
Gostei do clima de mistério que tem no livro. É quase que um livro de detetive às vezes. A exposição final mata o jogo de maneira elegante, completando essa ideia também (como naqueles filmes ou livros em que o detetive dá a solução), e isso tornou a leitura muito agradável. É um livro muito instigante, e não preciso nem falar, extremamente bem escrito, acho que falar "escrever bem" e colocar Machado na mesma frase, chega a ser um pleonasmo.
As páginas voam e a única coisa que segura a leitura é o prazer dela, pois você não quer acabar o livro logo (ainda mais não se tratando de um livro muito longo). Gosto da concisão e objetividade do livro, Machado tem uma noção de ritmo equivalente a de um maestro, acelera quando tem que acelerar, não enrola, desenvolve quando tem que desenvolver... dificilmente é uma leitura que cansa.
O livro poderia muito bem se estender por mais umas duzentas páginas, explorando certas implicações e o final de alguns personagens, mas ele prefere terminar o livro com um "silêncio ensurdecedor", que tornou ele ainda melhor. A gente só imagina o que acontece com eles, o que deixa um certo tom irônico, pois na verdade o que Machado parece dizer é que os demais personagens pouco importam.
Há um certo tom de denúncia social no livro também, explorando questões de machismo (à la século dezenove, é claro), convenções sociais, bem como pobreza e uma classe média que vive de aparências. A escravidão aparece mais como um pano de fundo, também com um tom de denúncia, porém de maneira muito mais indireta e sutil. Machado retrata mais os costumes da classe média brasileira mesmo, preferindo a tática de "implodi-la por dentro" na sua mediocridade.
Camargo é provavelmente o personagem mais nojento do livro, um interesseiro clássico da literatura machadiana, a parte em que Helena olha para os seus "dedos magros e peludos" é de dar aversão mesmo. Talvez eu esteja viajando, mas achei que ele tinha desejos incestuosos pela filha. Aliás, o incesto é todo um subtema do livro, como logo vai ficar óbvio nas primeiras páginas. Estácio é talvez um dos maiores bunda-moles da literatura machadiana, um personagem apagado, meio bobo, que não faz nada na vida a não ser ficar babando ao lado da irmã (que ele recém conheceu).
Outro personagem interessante é o do Padre Melchior, que lembra um pouco o padre do livro "As Pupilas do Senhor Reitor" (de Júlio Diniz), porém sem o caráter bonachão deste último. Aqui, ele é quase que um personagem sinistro, tem vezes em que ele até parece comemorar a desgraça alheia. Mesmo assim ambos tem semelhanças, por serem personagens que assumem uma espécie de liderança ao longo da trama.
Eugênia é outra personagem digna de nota, típica "beldade machadiana" que encanta com sua beleza física (porém sem muito conteúdo). A beleza feminina também é um tema muito presente, com exceção da cinquentona Dona Úrsula, praticamente todas elas são lindíssimas na imaginação de Machado, simbolizando atributos morais diversos ou mesmo opostos (dignidade, no caso de Helena; ou futilidade, no caso de Eugênia).
O enredo em si é bastante surpreendente, lá pelo meio o negócio tem um monte de reviravolta, mas nunca fica confuso ou maçante, tampouco gratuito. Machado sabe inserir essas surpresas e reviravoltas sem que isso perturbe a leitura. Tudo é conduzido de maneira muito natural e sempre prendendo a atenção do leitor.
Um livro excelente, com muitas camadas de leitura, e apesar de mais carregado de sentimentalismo que as obras mais conhecidas do Machado, ainda assim é inteligente o suficiente para prender a leitura. O final não me agradou tanto, pensei até em tirar uma estrela da avaliação por conta disso, mas o livro no geral é tão bem feito que não tive coragem. Retiro as "seis estrelas imaginárias" que eu tinha dado, pois quando me empolgo muito, tenho vontade de dar mais estrelas que o permitido. Então ficam "só" cinco estrelas mesmo.