3.0.3 16/01/2024
O sopro prateado: o impulso fantasma
“Senta-te sultanicamente entre as luas de Saturno, e imagina um solitário homem abstrato; e ele te parecerá um prodígio, uma grandeza, um sofrimento.”
Quando nos aprofundamos em algum livro, certamente ele perturbará o equilíbrio da nossa bússola interna. As vantagens que uma leitura potente nos confere sempre são capazes de nos surpreender. A capacidade de embarcar em grandes literaturas é um privilégio, e aquele que se dedica a esta expedição tão solitária invariavelmente é um sujeito que respeita os seus semelhantes. Cada escritor nos revela como o universo pode ser visto a partir de outros ângulos.
Em 1820, após ser golpeado por um cachalote, o navio baleeiro “Essex”, que era comandado pelo capitão George Pollard, naufragou em alto mar, e toda a tripulação ficou à deriva por três meses. Sem qualquer tipo de suprimento, os homens tiveram de recorrer ao canibalismo para sobreviver. A obra-prima Moby Dick (1851), do autor norte-americano Herman Melville (1819-1891), é um livro influenciado não só pelas experiências do escritor – que também foi marujo em navios baleeiros e mercantes –, mas também por histórias que marcaram épocas, como a mencionada, que também inspirou Nathaniel Philbrick (1956-) a escrever o livro No coração do mar (2000).
Após ver as suas finanças em declínio, O jovem narrador Ismael decide ir à cidade de Nantucket, localizada em Massachusetts, para embarcar em um navio baleeiro, mesmo tendo experiência apenas com a marinha mercante. Naquela época, a caça às baleias era abundante e rendia bons lucros. Antes de embarcar no “Pequod”, baleeiro cujo capitão era o autoritário e enigmático Ahab, que teve a sua perna arrancada por um cachalote, Ismael inicia uma grande amizade com o arpoador Queequeg. A bordo do “Pequod”, a tripulação foi apresentada a Starbuck, Flask, Stubb, pilotos responsáveis pelo comando dos botes do navio. Seus arpoadores eram Queequeg, Daggoo e Tashtego. Sem pendências, o “Pequod” estava pronto para seguir sua jornada de três anos em alto mar.
O real motivo da viagem vem à tona. Movido pela vingança, o capitão Ahab surge no convés após dias sumido de sua tripulação e diz que o principal objetivo da expedição é, na verdade, caçar a baleia branca Moby Dick, a besta marinha responsável por desgraçar vários navios e por arrancar a sua perna. Com esta ideia obsessiva em mente, Ahab persegue os rastros da baleia que o mutilou e que continua nadando livremente.
“[...] com as cartas de todos os quatro oceanos diante de si, Ahab tecia um labirinto de correntes e sorvedouros, almejando uma realização mais segura daquele pensamento monomaníaco de sua alma.”
Antes de encontrarem Moby Dick no oceano Pacífico, a expedição atravessa rotas sinuosas dos oceanos Índico e Atlântico. Assim, somos atirados em um maelstrom narrativo que desbrava os cantos do mundo. Se a narrativa começa carmesim, evocando imagens de fúria, fervor e sangue, à medida que a história se desenrola, o tom muda gradualmente, imbuindo a atmosfera da expedição com uma sensação de melancolia. Ismael retrata vividamente o terror que experimenta ao testemunhar a transformação de seu capitão na perseguição incansável de seu inimigo.
Para um escritor, a loucura serve como uma purificação da essência. Alguns artistas alcançaram com sucesso este estado e hoje ocupam posições relevantes em nossa sociedade. Poderíamos argumentar que em geral os escritores travam diálogos com a loucura e se esforçam para abraçá-la, naufragando ao canto das sereias. No âmbito da narrativa de Melville, a ausência de qualquer possibilidade de redenção para Ahab faz com que persista apenas o ódio. Embora haja uma presença de heroísmo trágico no capitão, ela é ofuscada pela dura realidade da história. O mote vingativo que Ahab sustenta ao longo de toda a narrativa é sem romantismo e calma.
A tarefa de compreender a simbologia da baleia cabe ao leitor. Moby Dick, quando se sente coagido, ataca de forma estratégica e inteligente, mas, no geral, é uma baleia que apenas segue o seu fluxo, ignorando aqueles que se aproximam dela, levando ao longo de seu corpo as cicatrizes e os arpões de todos os marinheiros que nunca conseguiram subjugá-la. As opiniões de Starbuck e Ahab não se encontram, pois, segundo este, Moby Dick é um assassino que age com perspicácia e astúcia.
“[...] e o navio silencioso, como que tripulado por marinheiros de cera pintada, prosseguiu, dia após dia, através da loucura e alegria veloz das ondas demoníacas. De noite, a mesma mudez da humanidade diante dos gritos do oceano prevalecia; ainda em silêncio, os homens balançavam nas bolinas; ainda sem palavras, Ahab enfrentou a tormenta.”
É o animal que detém o domínio. Parece-nos que existe uma batalha constante entre humanos e animais, onde o intelecto se revela impotente contra a força instintiva. Enquanto a obsessão continua a crescer, o vibrante mundo marinho gradualmente perece.
Moby Dick é uma história que exige ser contada em voz alta. Envolve cansar-se da cadência da linguagem e deter o olhar na bruma de cada página. Este romance marca o cenário literário de forma ímpar, e um leitor atento pode notar aspectos mais densos na obra. Moby Dick aprofunda pontos importantes, como as questões de raça, de hierarquia dos tripulantes, de exploração econômica com a caça às baleias (para a extração de óleo), entre outras questões de relevância mundial. O navio, aliás, opera como um microcosmo do mundo. Aquele que mergulhar na obra sentirá, na ponta dos dedos, o cheiro persistente de óleo písceo e inalará a cada frase a brisa salgada do oceano.
Joia redescoberta no século XX por escritores influentes, Moby Dick é uma aventura épica que rompe com épocas e parâmetros. Misturando impasses filosóficos, relatos científicos, poesia, sermões religiosos e diálogos à altura de um teatro shakespereano, sob a destreza e a precisão de Melville, Moby Dick é uma aventura sublime com destino à imensidão marítima e às profundezas do ser. Ao contar a obsessiva caçada de Ahab por Moby Dick, o livro narra uma metáfora espantosa da condição humana, transformando-se em um símbolo daqueles que caem nas profundezas insondáveis da loucura e da vingança. De certo, um grande feito da literatura mundial.
“No instante seguinte, o pesado nó corredio da ponta final da linha voou da selha vazia, derrubou um remador e, batendo no mar, desapareceu nas profundezas.”