lucasfrk 31/12/2022
Moby Dick ? Resenha
?O homem que se afasta do caminho do entendimento permanecerá na companhia dos mortos?. (Provérbios 21:16)
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?Por maior que seja a superioridade intelectual de um homem, não lhe é possível assumir o domínio prático e útil de outros homens sem a ajuda de algum tipo de artifício e manobra externa, em si mesmos mesquinhos e indignos.? (p. 161)
O transcendentalismo e o romantismo sombrio representaram dois lados opostos do Renascimento norte-americano nos augúrios do século XIX. Enquanto o primeiro projetava uma perspectiva estritamente idealista a despeito do homem e do universo, como reação, o romantismo sombrio ? adotado por autores como Edgar Allan Poe, Nathaniel Hawthorne e Herman Melville ? apontava para uma ótica mais pessimista: através de uma demonstração cruel da suscetibilidade individual do humano para o pecado, de modo a realçar a falibilidade impregnada nele (ao que muitos apontam como condição humana). Focado na energia espiritual da natureza, tais autores de espírito pessimista se demonstravam menos confiantes na perfectibilidade humana, crendo na natureza como plena detentora de verdades obscuras, primitivas e irracionais. Frente a natureza e sua força espiritual terrível, os indivíduos falham em suas tentativas de ocasionar alterações minimamente positivas ao seu redor. Imbuídas de simbolismo, essas narrativas apresentavam tendência ao sobrenatural, ao sofrimento e a tragédia, através do fascínio pelo irracional, pelo grotesco, pela propensão humana para a maldade, o pecado, a culpa, a vingança e a insanidade.
?É o meu jeito de afastar a melancolia e regular a circulação. Sempre que começo a ficar rabugento; sempre que há um novembro úmido e chuvoso em minha alma; sempre que, sem querer, me vejo parado diante de agências funerárias, ou acompanhando todos os funerais que encontro; [?] então percebo que é hora de ir o mais rápido possível para o mar.? (p. 31)
O colossal Moby Dick (1851), escrito por Herman Melville, é um dos romances primordiais da literatura ianque (visto que é o primeiro grande épico ficcional norte-americano). No bojo dessa rica literatura, o livro encontra ressonância e perenidade até os dias atuais, inspirando diversas obras artísticas que ultrapassam as páginas do papel e as fronteiras da arte da palavra. Inspirada no naufrágio do navio Essex, em 1820, a ficção tem ecos bíblicos e filosóficos, sendo então uma narrativa de aventura e, ao mesmo tempo, uma investigação filosófica. Narrado em terceira pessoa pelo marinheiro Ishmael, o leitor acompanha a saga do capitão Ahab para acertar as contas com um enorme cachalote albino ? que num passado recente destroçara sua perna. Como um observador ? tal qual o leitor ?, Ishmael é testemunha da obsessão de Ahab enquanto, por outro lado, Ishmael tenta conhecer a si mesmo e o seu papel no mundo. Rico em metáforas e sentidos, o livro de Melville permite uma imersão gradativa, de modo que o derradeiro embate ocorre apenas nas últimas páginas. Até lá, o texto trata muito do mar, da atividade baleeira e das características do cachalote, explorando a viagem dos tripulantes do baleeiro Pequod e todos os seus percalços nos confins do Pacífico.
(O próprio Melville, no capítulo 45, intervém para admitir o caráter alegórico davobra:
?Tão ignorante é a maioria dos homens de terra firme no que diz respeito a algumas das mais simples e palpáveis maravilhas do mundo que, sem a menção de alguns fatos simples, históricos ou não, sobre a pescaria, poderiam desprezar Moby Dick como uma fábula monstruosa, ou ainda pior e mais detestável, como hedionda e insuportável alegoria.?)
?[?] Todos os grandes homens trágicos são criados com uma certa morbidez. [?] Toda a grandeza mortal é apenas doença.? (p. 97)
Filho de comerciantes, Herman Melville nasceu em 1819, New York; iniciando a carreira como o pai, logo se tornou professor em escolas locais, trabalhando também na fazenda do tio e como bancário. Aos vintes anos ele embarca como marujo numa nau mercantil para Liverpool. Baseou-se em sua experiência como marinheiro de 1841 a 1844, e de uma ampla leitura na literatura baleeira, para produzir seu vasto material literário. Publicada numa época em que o interesse do público estava direcionado ao Oeste americano, a obra foi um fracassado comercial para o autor, não sendo impresso até a sua morte em 1891 (o texto só viria a ser classificado como o ?Grande Romance Americano? no século seguinte, no centenário do escritor, sendo, a partir daí, apontado suas mais diversas contribuições para a literatura ocidental). Sob o desdém dos críticos ingleses, Melville morreu na obscuridade, ditando a mítica frase: ?como toda a fama é patrocínio, deixem-me ser infame.?
?Um sentimento de solidariedade violenta e mística e assaltava; o ódio inextinguível de Ahab parecia meu. Com ouvidos atentos escutei a história do monstro assassino contra o qual eu e todos os outros havíamos dedicado nossas juras de violência e vingança.? (p. 193)
Além da inspiração do incidente em Essex, e de tantos outros, Melville também encontra ecos na literatura inglesa: desde as tragédias shakespearianas, passando pelo marco inaugural do romantismo britânico: o longíssimo poema A Balada do Velho Marinheiro, de Samuel T. Coleridge (que já ganhara versão em forma de épico da banda britânica Iron Maiden, no antológico disco Powerslave).
?Amigos, segurem meus braços! Pois, no simples ato de escrever meus pensamentos sobre este Leviatã, eles me consomem e debilitam pela enorme abrangência de sua envergadura, como se incluíssem o conjunto total das ciências e todas as gerações de baleias, de homens e mastodontes, passadas, presentes e vindouras, com todos os panoramas movediços dos impérios terrestres, e através do universo inteiro, sem exclusão dos arrabaldes.? (p. 459-60)
Moby Dick assume a forma de um megarromance, ao que certa vez Evert Duykinck, mentor de Melville, já proferia que ?há evidentemente dois, senão três livros em Moby Dick*, condensados em um só*?, de modo que esta jornada de caça ? e de existência ? se demonstra como um texto rico em linguagem, circunstâncias, personagens, e simbolismo. Demonstrando profundidade no conhecimento marítimo, o texto radicalmente descontinuado apresenta descrições detalhadas e realistas da caça à baleia e da extração de óleo de baleia, bem como a vida a bordo de um navio entre uma tripulação multicultural e multiétnica. É uma literatura de viagem, todavia que não se limita a um gênero específico, e sim combina diversos elementos e linguagens, haja vista a complexidade dramática e psicológica da obra.
?[?] Eu a vejo em sua força descomunal, fortalecida por uma malícia inescrutável.? (p. 178)
Épico monumental de fanatismo, o livro é intrincado, ao mesmo tempo, por um realismo factual e uma ambição autodestrutiva (?é melhor sucumbir no infinito tempestuoso do que ser vergonhosamente levado a sotavento, mesmo que isso represente a salvação!?, p. 125); um livro de referências shakespearianas, onde Ahab ? uma figura bastante ambígua ? espelha o herói trágico elisabetano, desde Macbeth, passando por Rei Lear, até mesmo Hamlet. Ao mesmo tempo, contudo, que contém elementos do teatro e da poesia, o texto ainda exala uma originalidade arrojada, assumindo profundidade enciclopédica, com intervalos estratégicos que transmitem tanto uma riqueza antropológica e zoológica (além de estilística).
?[?] A insanidade do homem é a sanidade do céu; e, distanciando-se de toda razão mortal, o homem chega por fim ao pensamento celeste, que para a razão é um absurdo e um delírio; e, bem ou mal, então se sente intransigente e indiferente como o seu Deus.? (p. 420)
Além de associar o cachalote com o Leviatã da Bíblia, o livro assume certa aspiração blasfema com a Bíblia. ?Inflamado pelo fogo infernal?, o livro manifesta uma depreciação da ortodoxia cristã, ao conferir ao texto tons de fé subvertida. O navio, que lembra uma embarcação funerária, é vítima das maquinações do destino, um presságio ominoso da vingança infindável do capitão, cujo orgulho ? ou soberba, um dos sete pecados ? foi ferido pela leviatânica baleia branca. As passagens mais explícitas estão no livro de Jó (?E só eu escapei para te contar?) e em Jonas (?Deparou o Senhor um grande peixe para que tragasse a Jonas e esteve Jonas três dias e três noites no ventre do peixe?), que ecoam essa saga marítima epopeica, em uma nação estruturada pelo protestantismo. Em certas passages, narrador chega a elevar o capitão e a tripulação à dimensão divina: ?Qualquer homem poderia ter matado uma serpente, mas somente um Perseu, um São Jorge, um Coffin teriam a valentia de enfrentar bravamente uma baleia. [?] Se reivindico o semideus, por que não o profeta?? (p. 372-3)
?[?] Sou atormentado por um desejo permanente de coisas distantes.? (p. 35)
O magnetismo literário é uma constante, vide a frase de abertura (?Trate-me por Ishmael?), que sugere uma identidade suposta e incerta. A aventura obsessiva e trágica é presentificada pelo carisma satânico de Ahab, pela batalha contra o divino e pela busca pelo significado da vida e da morte. Existe aqui uma noção de que a água oculta os mistérios do mundo: ?[?] toma o místico oceano a seus pés pela imagem visível da alma infinita, azul e profunda, que penetra humanidade e natureza.? (p. 173). Assim o livro desenvolve a baleia ? uma encarnação do mal e a incorporação das limitações do ser humano ? como um doppelgänger de Ahab (a cicatriz em seu rosto, semelhante à rachadura da Casa de Usher do conto de Allan Poe, evidencia esse elemento de duplicidade); uma besta mítica, sua loucura personificada, símbolo máximo de sua busca por vingança. Através de perspectivas não humanas, demonstra-se a impotência humana frente a força e o poder destrutivo do oceano.
?[?] O que são os terrores compreensíveis do homem comparado com a combinação de terrores e maravilhas de Deus?? (p. 126)
Contendo inúmeras reflexões sobre a condição humana, imbuído de diversidade religiosa, simbologias bíblicas e de significados míticos, a obra dimensiona o eterno conflito homem x destino, num animal irracional, porém intintivo: um animal cuja brancura se dá como símbolo da pacificidade, da pureza e da luz, mas porventura subvertida como a cor da morte (o horror da baleia está em sua brancura).
?[?] Eu vim para pescar baleias, e não para vingar meu comandante.? (p. 177)
Ahab ?atribuíra a ela não apenas todos os seus infortúnios físicos, como também seus sofrimentos intelectuais e espirituais?. De maneira que ?tudo o que mais enlouquece e atormenta; tudo o que alvoroça a quietude das coisas; [?] toda a maldade, para Ahab, se tornava visível, personificada e passível de ser enfrentada em Moby Dick*.*? (p. 198) Starbuck, o primeiro imediato, até tenta tenta trazer Ahab para a luz da razão diversas vezes, mas o tresloucado capitão permanece cego pela brancura da baleia: ?Deus, Deus está contra ti, velho; desiste! É uma viagem desgraçada! Desgraçada em seu início, desgraçada em seu andor?. (p. 510)
?O que ousei, desejei; e o que desejei, fiz! Pensam que sou louco ? Starbuck pensa; mas sou demoníaco, sou a própria loucura enlouquecida! A louvura varrida, que só se acalma para entender a si mesma! Dizia a profecia que eu seria destroçado; e ? é isso!? (p. 181)
O capitão exerce uma forte influência na narrativa: ?[?] então esse homem se torna único em toda a população de um país ? uma poderosa e admirável criatura, talhada para as nobres tragédias.? (p. 97) A vista disso, esse herói trágico, envolto de medo, delírio e sofrimento, projeta nossa própria falibilidade, encontrando na piedade um eixo para a compaixão. A luta de Ahab contra o divino não é por poder, mas por liberdade (da prisão da carne). O livro, nesse sentido, faz algumas analogias com a alma humana ?[?] tal como o oceano aterrador cerca a terra verdejante, também na alma do homem há um Taiti insular, cheio de paz e alegria, mas rodeado por todos os horrores da metade desconhecida da vida.? (p. 286)
A obra esbarra com o imaginário protestante, ao capitão Ahab, constantemente, quebrar o plano da realidade, jogando o que seria o motivo de sua desgraça no plano da superstição e estabelecendo um conflito presentificado pelo bem e mal:
?Que coisa é essa, que coisa sem nome, inescrutável, sobrenatural é essa; que fraudulento e secreto senhor e mestre, cruel e impiedoso imperador me domina; que contra todos os afetos e desejos naturais eu me sinta empurrado e pressionado e forçado o tempo todo; imprudentemente pronto àquilo que no meu próprio coração natural jamais ousei e ousaria? É Ahab, Ahab? Sou eu, Deus, ou quem é que ergue esse braço? Mas se o grande sol não se move por si; se é como um garoto perdido no céu; se nem uma simples estrela se mexe, salvo por uma força invisível; como pode então esse pequeno coração bater; esse pequeno cérebro pensar pensamentos, a não ser que Deus o faça bater, faça-o pensar, faça-o viver, e não eu?? (p. 546)
Os mistérios da existência contrasta um humor obsceno. A viagem de tons alegóricos (Pequod era uma tribo americana quase toda exterminada pelos britânicos no século XVII) revela o destino duma civilização formada pela sanha de progresso material, de expansão imperial, de supremacia branca e de exploração da natureza (a embarcação, portanto, pode também ser lida como um microcosmo dos EUA, ou do capitalismo americano, na era das maquinas e das economias de mercado). Em vista da diversidade da tripulação, em contraponto à monomania do capitão e à energia monolítica da baleia, há alusões à luta de classes; escravidão, enquanto transmite a energia selvagem da vida de caça às baleias. Ahab, ?rei do mar? arcaico e obstinado, pode ser lido como um empresário moderno, um mestre dos insultos. Num contexto histórico marcado pela reafirmação dos ideais de nação, a metáfora do barco microcosmo que abarca uma tripulação multiétnica e multicultural, nos leva a singrar as águas da existência. Ishamel, deslumbrado pelos avanços do século XIX, reflete que, ainda que a ciência esteja em pleno desenvolvimento, o mar permanece ? e permanecerá ? oculto e misterioso (que por sua vez se dá numa analogia com a alma humana).
?Melhor dormir com um canibal sóbrio do que com um cristão bêbado.? (p. 52)
Obra realista e de linguagem estilizada, Moby Dick é um registro do comportamento de uma época de valores distantes. Apesar dos variados pontos de vista, que marca uma certa inclusividade na narrativa, quase não se ouve vozes femininas (mesmo que o apelo às forças maternas da Natureza seja também uma constante). Como retrato de sua época, o livro apresenta conceitos ultrapassados, em passagens explícitas de racismo que maculam a obra crítica de seu próprio tempo (o termo ?canibal? é utilizado para os não europeus ?caucasianos?, ou o tratamento a personagens).
Isso sem contar ao tratamento dado por personagens afro-americanos como o grumete Pippin: ?Não ria assim, quando escrevo que o negrinho era brilhante, pois mesmo a negritude tem o seu brilho; observe os painéis lustrosos de ébano dos gabinetes reais.?, p. 417). Percebe-se, todavia, que por mais que mesmo essa personagem, num primeiro momento, seja tratada como como ?insignificante?, mas adiante, por outro lado, torna-se o único membro da tripulação a despertar lapsos de humanidade em Ahab. Pippin, de certo modo, representa a contradição de Melville em relação às questões raciais (para tanto, ao dizer que ?a insanidade do homem é o sentido do céu?, o narrador prenuncia, em Pippin, o que acontecerá com Ahab).
?A loucura humana é quase sempre felina e muito astuta. Quando pensamos ter acabado, pode ser que apenas tenha se transformado em algo mais sutil.? (p. 199)
Há de se notar, entretanto, que livro fora escrito e publicado em meados do século XIX, isto é, quase uma década e meia antes da abolição formal da escravidão nos Estados Unidos. Obras literárias refletem a conjuntura social e política de seu tempo, creio que seja dever do leitor crítico (e de editores competentes, ao adicionar notas e textos de apoio às edições) em perceber ideias e contextos de cada época retratada. Ninguém deixará de ler a meio caminho O Estrangeiro, de Camus, porque o personagem é um assassino de um árabe (talvez mais pela chatice do livro). Livros não foram escritos para agradar nossa visão de mundo preexistente, existiram muitos outros antes de nós existirmos (e muitos dos quais provavelmente nem iremos tomar contato), portanto, não se pode esperar que um livro do século XIX dos EUA (uma nação que se construiu nas bases da exploração e do imperialismo) não seja repleto de um cristianismo exacerbado, de racismo e xenofobia encrustados nele.
?Das criaturas, quão poucas têm a magnitude da baleia!? (p. 319)
A complexidade da obra não acaba por aí. Ao mesmo tempo que contem passagens lamentáveis, existe uma discussão ambiental bastante séria em torno de Moby Dick. A degradação ambiental e a crescente extinção das espécies vem levando pesquisadores e acadêmicos a notar uma nova abordagem de interpretação ao Direito Ambiental no livro de Melville. Escrito como diário, o texto explicita os impactos da atividade baleeira, manifestando uma preocupação profunda com o meio ambiente (apesar da classificação errônea das baleias como peixes), havendo possibilidade- de se ler reflexões sobre a mudanças climáticas, em passagens como: ?[?] tenho visões trêmulas e sombrias dessas eternidades Polares; quando bastiões de gelo em cunha faziam pressão sobre o que são agora os Trópicos?. (p. 461) Melville, um escritor autêntico, um ?profeta ecológico?, concebe o homem como parte integrante da natureza, condenando aqueles que a explora. O autor frequentemente ainda pontua a necessidade do ser humano em estar em plena harmonia com a natureza:
?Não é curioso que um ser tão imenso quanto a baleia veja o mundo com um olho tão pequeno, e escute o trovão com um ouvido menor do que o de uma lebre? Mas se seus olhos fossem tão grandes quanto as lentes do grande telescópio de Herschel; e seus ouvidos tão amplos quanto os pórticos das catedrais; teria por isso um alcance maior da visão ou ficaria com o ouvido mais apurado? De modo algum. ? Por que, então, você procura ?ampliar? sua mente? Aprimore-a.? (p. 342)
É possível ver que, todavia, ao mesmo tempo que a personagem Ishmael apresenta uma energia intelectual admirável, sua narração menospreza a autoridade científica ao dar voz a visões relacionadas a experiencia empírica: ?Antes de entrar no assunto [?], apresento minhas credenciais de geólogo, dizendo que, no decurso de minha vida agitada, fui pedreiro e também um grande cavador de valas, canais, poços, adegas, cavas e cisternas de todos os tipos.? (p. 460)
?Desforra, célere vingança e eterna malícia distribuíam-se por suas formas e, apesar de tudo o que o homem mortal pudesse fazer, o sólido contraforte branco de sua fronte chocou-se contra a proa a estibordo do navio, fazendo cambalear homens e pranchas.? (p. 572) (Nota-se que o homem pode até desafiar a magnitude da natureza e explorar seus recursos, mas sua força implacável acaba por respondê-lo de forma avassaladora).
?[?] Ainda que o homem ame o seu semelhante, é também um animal que faz dinheiro, propensão essa que muitas vezes interfere em sua benevolência.? (p. 419)
Como crítico dos rumos da industrialização e do desenvolvimento econômico de seu país, o autor denuncia um materialismo servil, baseado na satisfação meramente material (inatingível). Como alternativa, ele nos fornece a harmonia com a natureza, uma saída que nos leva à elevação espiritual. Em suma, não é nem panfletário às questões ambientais, e nem glorificador das crueldades humanas (tamanha tal influência que, em 2010, o naturalista Olivier Lambert nomeou uma ?nova? espécie como Livyatan melvillei (uma parente do cachalote), em homenagem ao escritor, adotando a pronúncia hebraica do gênero).
?A cabeça inteira não parece expressar uma grande e resoluta decisão de enfrentar a morte? Essa Baleia Franca eu julgo ter sido uma Estóica; e o Cachalote, um Platônico, que em seus últimos anos de vida se dedicou a Espinosa.? (p. 346)
Enquanto Moby Dick acerca-se de referências estilísticas, narrativas e filosóficas, por outro lado, no bojo da cultura popular, a obra de Melville tornou-se perene, influenciando as artes no geral (sem contar, claro, com a Starbucks Company). Vemos ecos desde a canção instrumental homônima da banda Led Zeppelin, de seu segundo disco, famosa pelo excepcional solo de bateria de John Bonham (aliás, não é a primeira vez que o grupo faz referências ao âmbito literário, compondo, inclusive, no mesmo álbum, Ramble On, inspirada em O Senhor dos Anéis); além disso, temos o DJ novaiorquino Moby (que tem parentesco com Melville); o transcendente álbum Flossenengel, da banda alemã de rock progressivo Novalis (cujo nome é homenagem ao filósofo romântico). Além disso, inspirou pintores, poetas, cineastas e músicos como Orson Welles, Laurie Anderson, Sylvia Plath, Jackson Pollock, Stanley Kubrick, Bob Dylan (citando o autor no seu discurso do Nobel), e muitos outros.
?És como um leão das águas, e como o dragão do mar?. (Ezequiel 32:2)
No cinema, nota-se além de inumeráveis obras que citam Moby Dick, há a adaptação de John Huston. Apesar de Huston e Ray Bradbury ? ambos roteiristas da obra ? captarem o tema da fragilidade humana (que é recorrente na filmografia do cineasta), o filme me parece bastante irregular. Sumariamente, no livro, a imensidão do mundo parece engolir o destino das personagens ? a grandeza do mar contrastada com a pequenez do Capitão, enciumado pela arrogância e pela soberba ?; no filme, no entanto, esse mundo parece extremamente artificial, prestes a desmoronar, como se a personagem Ahab fosse maior que o mundo (entenda-se, visto que se trata de um produto hollywoodiano que preserva mais seus ícones e mitos do que de fato propor uma ideia estilística razoável, se bem que John Huston, noutros filmes, soube tratar desta questão exposta).
?Como podes aguentar sem enlouquecer? Será que os céus ainda te odeiam, a ponto de não poderes enlouquecer?? (p. 491)
A presente edição da Editora 34 tem tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza (quase idêntica à versão da antiga Cosacnaify). Com elucidativos textos de apoio, a edição é comemorativa ao bicentenário de nascimento de Melville, apresentando um prefácio magnífico de Albert Camus ? que denomina Melville como ?o Homero do Oceano Pacífico? ? posfácio do editor Bruno Gambarotto. Para concluir, Camus, ainda no prefácio, pondera que, em Melville, ?tanto a criança quanto o sábio encontram alimento?.
Mais do que tantas interpretações aqui exacerbadamente expostas, acredito que a crítica de Moby Dick reside sobretudo naqueles que, com doses de empáfia, arrogância e soberba ? e por que não loucura ? desejam, numa incessante busca pela perfeição do homem, domar a natureza a todo custo, como se, em última instância, este movimento não levasse a consequências trágicas. Me parece que Lou Reed tenha captado bem a ideia do livro ao compor este versos de Last Great American Whale: ?With human life not worth more than infected yeast / Americans don't care too much for beauty?. Grande parte do fascínio gerado por este colossal monumento literário está, certamente, em grande parte no fascínio do homem pelo oceano, visto que nossa compreensão a despeito ainda bastante obscura (obscura como a brancura da baleia). Fernando Pessoa, em Mar Português, pode arrematar melhor que eu: ?Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu.?
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?[?] O acontecimento mais maravilhoso deste livro não é apenas comprovado pelos fatos corriqueiros dos dias de hoje, mas que essas maravilhas [?] são meras repetições atravessando os tempos; assim, pela milionésima vez, dizemos amém a Salomão ? em verdade, não há nada de novo sob o sol.? (p. 222, Eclesiastes 1:9)