celle 06/04/2023
?seu coração arde de ódio, temo por ele?
Esse é a minha terceira leitura russa e me afirmo, antecipadamente, enquanto uma mera leitora, pouco estudiosa da literatura e, portanto, meus apontamentos são amadores.
Para a maior parte dos clássicos da literatura que eu leio, sempre registro ?futuramente, será uma releitura, quando eu estiver mais madura? e, de fato, acredito que livros profundos como esse merecem, sim, um olhar mais vivido e experiente, para serem melhor aproveitados. No entanto, como não posso refrear a minha curiosidade para com esse autores, acabo aproveitando-os ao máximo, ponho-me profundamente no lugar de cada personagem, envolvo-me em seus conflitos, choro, sinto compaixão, retiro boas lições para a minha vida - mesmo que esse não seja o objetivo de qualquer livro do porte, de tudo podemos aprender um pouco - e reconheço a necessidade de retirá-los novamente, da estante para a cabeceira, em algum novo dia.
Dostoiévski é um autor-filósofo. Zonas desconfortáveis do nosso íntimo e muitos questionamentos morais são, pois, comuns e bem explorados no livro. Posso dizer que durante toda a leitura eu me encontrei em constante conflito comigo mesma, com meus próprios ideais e me perguntando ?o que eu faria se estivesse no lugar de Aliocha??, muitas vezes sem resposta. Encontrei-me em catarse e envolvida com cada personagem principal, diante da qual pude ter grande aproximação devido ao seu desenvolvimento pelo autor.
As personagens principais - espelhadas no que, em realidade, o ser humano é - possuem uma moral instável, balançada entre a razão, o divino e o carnal, o amoral. A jornada e os conflitos psicológicos tornam-se mais extensos e desenvolvidos do que, de fato, a própria narrativa. Até no ?clímax? não há muita mudança de cenários e acontecimentos e, sim, uma grande e intrigante exploração das psiqués que já conhecemos, conflituosas por si só, pelos seus passados, traumas e, também, pelo envolvimento de pessoas de extrema importância em suas vidas.
Existe o retrato de seres profundamente humanos, nada perfeitos e em constante dúvida frente à sua natureza. O autor, ao longo da narrativa, por meio de muitas passagens, deixa claro a existência - no senso comum daquele cenário - de uma natureza Karamázov, vil, libertina e egoísta, sobre a qual todos os irmãos estão, sentenciados - uma herança de seu genitor:
?A sensação da própria queda degradante é tão indispensável a essas naturezas desenfreadas, frenéticas, quanto a sensação da mais alta nobreza moral.? P.824
Nessa passagem, evidencia-se a característica mor daquilo que seria inerte à família desses homens: a contemplação do abismo acima de si - ?dos ideais elevados?, das almas imaculadas - e do abismo abaixo de si - aquele para o qual sempre voltam-se.
Todos os irmãos possuíam isso e suspeito de que todos nós, uns mais que outros, a possuímos também. Nosso - e meu herói -, Aliocha, por mais nobre que fosse a sua alma, admitiu pensamentos vis, dúvidas cruéis que balançavam sua fé e fragilizavam as bases daquilo que ele imaginou ser devoto. Até o mais querido por mim mostrou-se vulnerável, à semelhança do que, na sociedade, existem entre nós: o erro, o pecado e a maldade. Não há perfeição na crença.
A paixão arrebatadora, o ciúmes, o sentimento de posse e o desejo de vingança foram consequências inerentes da negligência, do abandono e da indiferença daquele que, aos seus filhos, não deu nem, ao menos, afeto. Mas, acredito que as relações entre pai e filhos não foram o principal.
O cerne das questões psicológicas nele fomentadas, na minha opinião, foi explorar os resultados de todo esse meio caótico e de todos esses sentimentos arrebatadores, que deixaram, na alma de cada um dos irmãos - de diferentes formas -, enormes cicatrizes:
?Se o grão de trigo cai na terra e não morre, permanecerá só; mas, se morrer, produzirá muito fruto.?
E, realmente, produziu muito fruto.
Sobretudo, é constantemente repetido que nós, seres humanos, somos permanentemente culpados por tudo e por todos; que somos tão pecadores quanto qualquer outro ser; que erramos, pecamos, desejamos e, no fim, nos agarramos àquelas lembranças da bondade e do amor sentidos em nosso íntimo outrora, como agarra-se à cebola a pecadora orgulhosa. Concluímos que cabe somente a Deus julgar e, a nós, desejar sermos vistos e ouvidos somente perante a Ele.
No mais, é uma leitura difícil, mas recomendo para qualquer um que queira desafiar os alicerces do seu pensamento.