Paulo Silas 16/09/2018“Nem este livro nem eu somos políticos” – assim inicia Ortega Y Gasset um de seus apontamentos prévios no seu “prólogo aos franceses”. É um esclarecimento que faz necessário ao considerar muitas das reflexões constantes no livro, mesmo porque, conforme o autor, “a missão do chamado “intelectual” é, em certo sentido, oposta à do político”. “A Rebelião das Massas” é uma obra filosófica – que fique claro – que trata da cultura e do desenvolvimento histórico da civilização. Assim, é sobre tal perspectiva que deve ser lida, devendo ter isso em conta durante toda a leitura a fim de que se evitem tropeços ou incompreensões acerca de seu profundo e complexo conteúdo.
A crise que se instaurou com “o advento das massas ao pleno poderio social” é o que é enseja na rebelião das massas. As multidões passam a ser vistas por toda a parte. “Já não há protagonistas: só coro”. Não há espaço para o diferente, uma vez que, quando surge algo assim, a massa sufoca, elimina. A alma vulgar é a característica do ambiente em que as massas se rebelam. Essa rebelião, frise-se, não constitui necessariamente um caráter político, principalmente quando se leva em conta que “a vida pública não é comente política, mas, também e primeiro, intelectual, moral, econômica, religiosa”. Ela se estabelece a partir do ideal da soberania do “indivíduo não qualificado”. Esse ímpeto da virada da servidão para a proclamação da consciência de senhorio, por mais que já conquistada pelo indivíduo, permanece latente no “homem médio, na massa”. A capacidade de realização passa a ser um sentimento comum aos indivíduos, por mais que não se saiba o que realizar em concreto. É algo perene e árido ao mesmo tempo – “com mais meios, mais saber, mais técnicas que nunca, o mundo atual acaba sendo o mais miserável que já houve: à deriva, nada mais”. É que o mundo deu ao indivíduo um grande repertório de possibilidades, porém, nenhuma dessa conquistadas pela sociedade, pois tratam-se de uma herança de conquistas passadas. Eis onde reside talvez o principal dos problemas do estado de coisas denunciado na obra: “herdeiro de um passado imenso e genial – genial de inspirações e de esforços -, o novo vulgo foi mimado pelo mundo ao seu redor. Mimar é não limitar os desejos, é dar a um ser a impressão de que tudo lhe é permitido e a nada está obrigado. A criatura submetida a esse regime não tem a experiência de seus próprios limites”. A grande consequência disso seria o fato de que as massas “não se preocupam com nada além de seu bem-estar e, ao mesmo tempo, são insolidárias às causas desse bem-estar”. A massa, portanto, seria constituída por aquele indivíduo que como como modo de ser uma vida vulgar, uma vida inerte, que compele a si própria a uma imanência perpétua. E “o homem-massa se sente perfeito”, em que pese sua alma seja medíocre e “incapaz de transmigrações”, pois, como já pontuado, a massa se comporta como herdeira cuja herança é a civilização, ensejando, em muito, num trilhar irrefletido da vida, do agir, do se manifestar, do pensar, estando aí caracterizado o “homem que veio à vida para fazer o que lhe dê na telha”, ou seja, o “filhinho de papai” que “acredita poder se comportar, fora de casa, da mesma forma que em casa”. Enfim, é sobre as massas e sua forma peculiar de rebelião (exercício de “pensar” dominante em toda a sociedade que impede o verdadeiro pensar) que a atenção de Ortega Y Gasset se volta na obra, demonstrado, denunciando e criticando a forma com a qual se estabelecem na sociedade contemporânea.
O livro foi escrito/publicado na década de 20/30 do século passado, de modo que sua leitura merece ser contextualizada – tanto pelo aspecto temporal como pelo situacional. Diz-se no sentido da perspectiva eurocêntrica do autor – que deixa claro em seu prólogo qual o público visado ao escrever a obra. Curiosamente, reafirmando tal ponto, o seu prólogo é voltado para os franceses, enquanto o epílogo é destinado aos ingleses. Há apostas com base em seu pensamento, acertadas ou não. A título de exemplo, a crítica do autor à Sociedade das Nações que revelaria o fracasso de toda e qualquer tentativa de constituição de um corpo internacional a fim de dirimir conflitos entre as nações. Ainda assim, o livro é, e muito, atual, além de romper diversas barreiras geográficas, ainda mais ao considerar que se trata de uma obra filosófica. Sua importância merece ser destacada.
Em dado momento, o autor declara crer que “um livro só seja bom na medida em que nos traga um diálogo latente, em que sintamos que o autor sabe imaginar se leitor concretamente, e que esse sinta como se saísse, de entre as linhas, uma mão ectoplásmica que apalpa sua pessoa, que queira acaricia-la – ou então, muito cortesmente, dar-lhe uma porrada”. Se assim é – e também creio que assim seja-, “A Rebelião das Massas” preenche os requisitos daquilo que se constitui um bom livro. É ótimo. Os ensaios que o constituem exigem um pensar profundo, requerendo atenção e releituras para que o seu conteúdo seja realmente refletido e compreendido, seja para concordar ou discordar de algo do muito que é trazido pelo autor em seus textos. Uma obra de peso que merece ser lida, refletida e debatida.