Paulo 17/07/2023
Loucura com dignidade; tolice com sabedoria
Um clássico absoluto. Considerado o primeiro romance moderno, continua sendo o melhor livro que já li, embora a primeira leitura tenha me maravilhado mais.
Nessa releitura utilizei a edição da Penguin, que é traduzida por Ernani Só, tem poucas notas de rodapé e linguagem mais moderna. Isso não tira o encanto da obra, mas eu preferi a da L&PM, traduzida por Viscondes de Castilho e Azevedo, por achá-la mais adequada ao texto original e produzir um efeito cômico mais intenso.
A história é conhecida universalmente.
Um fidalgo de 50 anos de idade, viciado em livros de cavalaria, cisma em sair pelo mundo como “cavaleiro andante” em busca de aventuras. Seu cavalo é um pangaré chamado Rocinante; sua armadura e armas são todas decrépitas, improvisadas. Resolve se intitular “Dom Quixote de La Mancha” e tem como amor platônico a famigerada Dulcinéia Del Toboso.
Seu escudeiro é Sancho Pança, camponês gordinho casado com Teresa Pança e amante da boa mesa, pai de dois filhos que fala por provérbios e o acompanha na esperança de ser governador de uma ilha.
Na primeira aventura juntos, Quixote se debate contra moinhos de vento, acreditando se tratar de gigantes. Embora alertado por Sancho, Quixote toma um baita tombo e sai todo estropiado.
Diversas outras situações inusitadas são enfrentadas por Quixote, que se intitulou o “Cavaleiro da Triste Figura”: ele acredita que uma bacia de barbeiro era um elmo lendário; pensa que dois rebanhos - um de carneiros, outro de ovelhas - eram dois exércitos se confrontando; ataca odres de vinho pensando serem inimigos; acredita voar pelos ares montado em um cavalo de madeira.
Com efeito, Dom Quixote é tido como completamente louco no que se refere aos assuntos da “cavalaria andante” e possui uma visão ambígua sobre a realidade, acreditando que os mais banais atos do cotidiano são grandes e extraordinárias aventuras. Para ele, estalagem são castelos; prostitutas, donzelas; prisioneiros condenados às galés, injustiçados; uma simples camponesa, a mulher mais bonita do mundo; e por aí vai.
Em contraponto, Sancho Pança busca, em vão, abrir seus olhos à realidade, mas sempre pisando em ovos para não contrariar seu senhor e esperando receber suas recompensas, em especial o governo da ilha.
Esse contraste de personalidades rende momentos cômicos e filosóficos por toda a obra, que é dividida em duas partes.
Na primeira, Cervantes insere alguns contos extensos que quebram um pouco a narrativa principal e desviam a trama de seus protagonistas. Embora as histórias sejam excelentes, não se comparam à delícia de acompanhar Quixote e Panço.
Na segunda parte, Cervantes não se utiliza desse artifício e Sancho Pança vive momentos impagáveis como “governador” de sua tão sonhada ilha. Centrada nos protagonistas, a segunda parte ganha em densidade filosófica e, ao se aproximar do desfecho, a comédia deslavada vai se transformando em tragédia.
Muitas interpretações da obra são possíveis.
Eu particularmente admiro a coerência de Dom Quixote com seus ideais cavalereiscos. Suas virtudes são incontestes: coragem, lealdade, fidelidade, bravura, caridade, perseverança, esperança, empenho da palavra. Quantas vezes ele literalmente caiu e levantou do cavalo? Jamais reclamou dos percalços de seu ofício; jamais pensou em desistir.
Quixote representa o espírito, a consciência individual, o livre arbítrio, em voga na cosmovisão medieval que dava os últimos suspiros. Embora também fosse um intelectual, leitor de vários livros e sabedor de vários assuntos, Cervantes deixa clara sua opinião de que os que pegam em armas têm mais valor do que os que se dedicam às letras. Mas o cavaleiro também representava o coração, a coragem, tanto que Quixote busca acima de tudo a honra e a fama por seus feitos e atos.
Sancho simboliza o “baixo ventre”, os prazeres da gula, a ambição pela riqueza e pelos cargos. Mas que fique claro: embora tolo, ele vai se tornando sábio, é uma personagem muito complexa.
Sendo o ser humano composto de corpo, alma e espírito, Sancho e Quixote se complementam.
Quixote ao final é derrotado em um duelo por Sansão Carrasco, bacharel que representa o racionalismo e o materialismo que começava a despontar na época. Como combinado antes da luta, Quixote deu sua palavra e concordou em ficar pelo menos um ano afastado de suas atividades de cavaleiro andante.
Privado de sua loucura e de seus ideais, Quixote recobre finalmente a razão, mas, adoentado, morre. É como se ele não pudesse mais existir sem viver o seu sonho.
A sociedade moderna parece ter matado completamente o espírito e a alma do homem, simbolizados pelo cavaleiro andante. Com efeito, o homem moderno é guiado pelos prazeres do baixo ventre à procura de experiências efêmeras, do corpo perfeito e de “qualidade de vida”. Consegue olhar, mas não ver a vida.
Há ainda muitas questões que poderiam ser pontuadas nesse breve resumo, como a genial metalinguagem usada na obra, a influência dela em outros romances “em movimento”, como “On the Road” e “Meridiano de Sangue”, e também a correlação da visão de mundo de Quixote com a vida atribulada do próprio Cervantes.
Deixarei o desenvolvimento desses temas, contudo, nas próximas releituras que farei. A próxima será da tradução de Ferreira Gullar e, na sequência, o original em espanhol.