Stella F.. 12/07/2022
Cavaleiro da Triste Figura
DOM QUIXOTE – MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA – PENGUIN COMPANHIA
Cervantes conheceu a fama quando lançou o primeiro volume de Dom Quixote, em 1605, apesar de antes ter escrito o romance pastoral, Galateia. Em 1613 lançou Novelas Exemplares e em 1615 lançou o segundo volume de Dom Quixote, como prometido.
Teve uma vida sofrida, participou da batalha de Lepanto, depois foi preso e sofreu dificuldades financeiras.
A primeira intenção de Cervantes era ridicularizar os romances de cavalaria, que já estavam em decadência na Europa, fazendo ironias e algumas anedotas sagazes em torno de toda uma mística de heróis que salvam mocinhas e do cavaleiro andante que faz justiça.
O primeiro viés do livro é cômico e com o passar do tempo e vários estudos sobre os dois volumes, eleva-se o romance a um patamar de primeiro romance nos moldes que Cervantes idealizou, onde o leitor torna-se figura preponderante na ação. Muitas críticas são em torno de falhas que foram corrigidas de maneira brilhante no segundo volume, nada que afete a leitura e diminua o seu brilho.
Dom Quixote aparece nos primeiros capítulos com o desejo de ser tornar Cavaleiro Andante e seguir os passos dos cavaleiros descritos por grandes escritores da Idade Média. Sai da Mancha, onde vive com uma sobrinha e uma ajudante em busca de aventuras e pessoas fragilizadas que precisem do seu apoio. Todos ficam receosos pois o consideram louco por ter lido tantos Romances de Cavalaria. No meio do caminho seus amigos conseguem convencê-lo a voltar para casa para arranjar um fiel escudeiro. E lá resolvem, enquanto pensam que Dom Quixote irá desistir, queimar seus livros, sua biblioteca e quase não sobra nenhum exemplar.
“Há muitos anos que esse Cervantes é grande amigo meu, e sei que é mais versado em infortúnios que em versos. Seu livro tem alguma coisa de boa invenção: propõe algo, mas não conclui nada. É preciso esperar a segunda parte que promete: talvez com a emenda alcance de todo a misericórdia que agora lhe é negada. Enquanto isso, tende-o recluso em vossa casa, meu amigo.” (posição 1301)
Então Dom Quixote sai pela segunda vez, agora com Sancho Pança, um vizinho que resolve segui-lo porque acredita que o seu senhor é sábio e que vai recompensá-lo de alguma maneira, com uma ilha ou algo bem grandioso. E Dom Quixote elege Dulcineia del Toboso como sua musa inspiradora, àquela que ao retornar das aventuras vai compensá-lo por todos as glórias e derrotas, mas ao longo de todo o romance duvidamos da sua existência.
As vestes são completamente esfarrapadas, o escudo e o elmo são de algum utensílio doméstico e seus animais são frágeis, Rocinante, cavalo de Dom Quixote e o burro, animal de Sancho, são lentos e esquálidos.
É uma trapalhada atrás da outra. Vemos Dom Quixote ser consagrado Cavaleiro Andante por um hospedeiro, vemos o episódio dos Moinhos de Vento, o episódio da caverna de Montesinos, que a mim pareceu um pouco com as Mil e uma Noites, e muitos outros em que só se dão mal. Pessoas os enganam, principalmente o Duque e a Duquesa; seu próprio amigo, Carrasco o engana, e Dom Quixote acredita que está encantado, que está sempre em um castelo, e não em uma taberna. No fundo é um ingênuo ou ainda puro em relação à maldade da humanidade. E durante seu trajeto ele é apelidado de Cavaleiro da Triste Figura.
No primeiro volume conhecemos muitos outros personagens e Dom Quixote muitas vezes nem aparece na trama. Alguns episódios são bastante interessantes, outros mais arrastados.
No geral gostei bastante da escrita, um livro de fácil leitura, mas extenso. Os diálogos entre Dom Quixote e Sancho Pança são quase sempre bastante filosóficos, sobre amor, poder, poesia, livros, amizade e muitos outros temas pertinentes.
“Enfim, senhor bacharel, penso que para compor histórias e livros, de qualquer tipo que sejam, é necessário muito bom senso e um discernimento maduro. Escrever com graça e espírito é para grandes engenhos: a mais sábia figura da comédia é a do bobo, porque não pode ser bobo aquele que quer passar por bobo. Uma história, por assim dizer, é coisa sagrada, porque deve ser verdadeira, e onde está a verdade, está Deus, que é a verdade. Mas, apesar disso, há alguns que escrevem e despacham livros como se fossem bolinhos fritos.” (posição 9003)
Sancho me fez rir muito com seus ditados, que usamos até hoje, e que Dom Quixote reclamava que eram excessivos, mas também soltava os seus, com a diferença é que eram ditos na hora exata e não falados a esmo.
O segundo volume começa com a explicação de que existe um manuscrito encontrado e aos pouquinhos vamos sabendo da continuação das aventuras do Cavaleiro Andante. Para mim, o ponto alto é quando Dom Quixote fica sabendo de um manuscrito que todos leram e que não condiz em nada com suas experiências. Fica indignado, e em uma hospedaria, a única que não acha que é um castelo, escuta entre as paredes dois homens falando sobre o livro. No dia seguinte, se apresenta como o verdadeiro Dom Quixote, e vemos um declarado caso de fraude, de invenção sobre uma pessoa. Nesse volume vemos Sancho se sobressair, passando de um bobo para alguém com astúcia, e vai mostrar grande sabedoria ao ser declarado governador de uma “ilha”, mais uma peça pregada pelos Duques que querem se divertir às custas dos dois “ingênuos”, mesmo sabendo que Dom Quixote estava sempre no limbo entre a loucura e a lucidez.
“Em 1615, Cervantes publicou um segundo livro no qual, de personagem que lê, Dom Quixote se transforma em personagem lido, pois muitas das pessoas que encontra leram o livro I e sabem tudo sobre ele.” (1001 livros para ler antes de morrer, Editora Sextante, 2010, pg. 35)
E após muitos percalços, Dom Quixote vai ter a última e única batalha de sua vida, e perde. Desiludido, fica muito triste e resolve mesmo cumprir com o exigido pelo ganhador: que ele voltasse para casa e lá permanecesse e não falasse mais em cavalaria. Chegando em sua casa, fica doente e acredita que estava mesmo louco ao acreditar em tudo que falavam os livros de Cavalaria. As próprias pessoas que desejavam que ele abandonasse as aventuras, ficam tristes por ele, e pensam que não queriam que tudo terminasse assim.
Uma leitura prazerosa e indispensável, que adiei por tantos anos. Mas nunca é tarde para se ler os clássicos, são muitos, sempre faltará algum na lista.
Finalizando com uma linda citação: " Repara, Sancho - respondeu Dom Quixote -, que há duas maneiras de formosura: uma da alma de outra do corpo. A da alma se mostra e brilha pela inteligência, pela honestidade, pelo bom comportamento, pela generosidade e a boa educação, e todas essas qualidades cabem e podem estar num homem feio, e quando se tem em vista esta formosura e não a do corpo, o amor costuma nascer com ímpeto e com vantagens." (posição 15446)"