underlou 04/02/2022
A leitura do clássico "Madame Bovary" se prova mesmo indispensável, ainda que o livro apresente alguns obstáculos para a leitor. De início, não é uma leitura fácil, há vários truncamentos da narrativa, a qual se prolonga de forma arrastada até pelo menos a segunda parte (a história se divide em três partes), sem que nenhum acontecimento em particular aconteça. Nesse sentido, somos colocados no mesmo lugar da personagem título, a qual "no fundo da alma, entretanto, [...] esperava um acontecimento"; o autor parece, a todo instante, preocupar-se tão somente em descrever com precisão exatamente tudo.
Essa descrição precisa, a propósito, é ao mesmo tempo um ponto negativo e positivo do livro. O enredo se torna extremamente enfadonho nas páginas inicias, mas conforme a leitura engrena, esses pormenores aos quais o autor se atém se tornam mais justificáveis: adentramos de vez na história com uma noção cada vez mais bem enraizada sobre os personagens - o desejo irreparável de Emma e a bondade sem fim de Charles, por exemplo. Outro ponto que se torna uma chave para a compreensão do todo da obra é, por assim dizer, uma aparente busca incessante do autor por descrições vigorosas que versam sobre conhecimentos gerais, abrangendo arte, ciência e religião.
Quanto às escolhas da personagem central, não me precipito em atribuir um juízo de valor, como geralmente vejo alguns leitores fazer, penso apenas que o próprio autor se encarregou de fazer as devidas ponderações sobre os comportamentos de cada personagem. No caso de Emma, "a mediocridade doméstica" a fazia entregar-se ao domínio do que ainda hoje é considerado socialmente imoral - e isso, numa camada superficial, me basta entender, sob risco de procurar por explicações estapafúrdias para além do texto.
Finalmente, temos um final arrebatador (a descrição, aliás, do desfecho da Madame Bovary é uma das mais bárbaras que já li - e, a despeito do contexto histórico exterior ao livro, só posso imaginar mesmo quão polêmica foi à época do lançamento a coragem de Flaubert em retratar tamanho realismo) com um Charles, resignado e complacente, a repetir para si que tudo não passou de culpa da fatalidade!