Ladyce 13/11/2011
A ambiguidade que nos rodeia
Depois da leitura do excelente romance A MULHER DE VERMELHO E BRANCO, de Contardo Calligaris, [ Cia das Letras: 2011] eu gostaria de poder rever meu primeiro professor em teoria da percepção, Antônio Gomes Penna (1917-2010), para dizer, “valeu mestre”, o senhor me preparou para a boa interpretação de texto e das artes visuais. A realidade é plural. É a soma do que vemos e do que não vemos. Mas através desses anos, como historiadora da arte, o conhecimento da gestalt raramente se fez óbvio, pelo menos ostensivamente. A razão é simples: a ênfase tem sido na historiadora e não no teórico das artes visuais. A história da cultura ocidental através das artes plásticas e da literatura prevaleceu sobre as teorias da percepção, se isso pode de fato acontecer, porque a história também está sujeita às interpretações diversas não sendo fixa nem sedimentada. Como tudo mais é a soma do que vemos e do que não vemos. O romance de Contardo Calligaris é uma fascinante e deliciosa aventura, contagiante e sedutora, no mundo das nossas percepções daquilo que nos rodeia, daquilo que nos afeta e até mesmo da interpretação dos nossos sonhos.
Mas não se enganem, A MULHER DE VERMELHO E BRANCO é antes de tudo uma ótima história, contada de maneira simples, direta, sem muitos rodeios literários. É um quase-thriller. Digo um quase-thriller porque as aventuras que se desenrolam ao longo do caminho são mais de ordem intelectual. Até mesmo o perigo é mais potencial do que factual, se bem que tão importante quanto. Mas há um fio condutor de suspense até a última página, quando temos que reconsiderar tudo o que poderíamos ter imaginado e somá-lo ao que já considerávamos como certo.
A trama se passa em seis meses de 2003 com duas atualizações em 2010 e 2011 e retrata a vida do psicanalista Carlo Antonini, dentro e fora de seu consultório: vida profissional e particular. São os dois aspectos de sua vida que se entrelaçam: ora o psicanalista, ora o homem comum nos ajudam a construir o enredo. Seguindo seus passos e suas divagações, considerando os amigos, as conversas e, em particular, uma paciente entramos com ele na difícil arte de interpretar a realidade que se apresenta aos seus olhos. A MULHER DE VERMELHO E BRANCO não deixa de ser um envolvente ensaio prático sobre a ambigüidade, um documento lúdico que demonstra como as condições do observador modificam a importância do que é percebido.
Nessa narrativa tudo tem muitas faces. Tudo é a soma de todos os seus componentes tanto os percebidos quanto os que estão distantes do nosso conhecimento: as pessoas têm diferentes nacionalidades, vão e vêm de diferentes países, falam pelo menos duas diferentes línguas com familiaridade. São famílias com mais de uma identidade, vindas de diversos lugares do mundo. Duas mulheres, que a princípio parecem diametralmente opostas, ambas com singular dualidade entre seus nomes de batismo e os nomes pelos quais vêm a ser conhecidas, apresentam comportamentos que, por base em um evento, parecem se modificar no inesperado oposto do que haviam sido até então. Ambas podem ou não ser suspeitas de atos de violência, mas ambas também podem demonstrar fragilidade e doçura. Até mesmo o psicanalista Carlo Antonini que narra o romance, que trafega com familiaridade entre São Paulo, Nova York e Paris, que muda de língua como se muda de roupa, considera a ambivalência do dentro e do fora de seu consultório, de seus motivos e até do que a vida poderia ter sido. E ainda é confrontado com a ambivalente leitura que faz daqueles que o rodeiam, dos amigos e conhecidos. Não é que a realidade esteja sempre em questionamento na narrativa, é ela que se apresenta camaleonesca, múltipla, facetada e precisa ser ajustada à medida que os personagens dão vazão à fluidez de suas vidas.
Mais do que um romance, uma aventura ou um thriller, A MULHER DE VERMELHO E BRANCO é um exemplo do trabalho da psicologia cognitiva. Ele demonstra a realidade é ambígua, que cada pessoa, fato ou evento pode mudar de acordo com a interpretação que deles fazemos. E, no final, quase somos surpreendidos, não necessariamente pela trama. Mas quando consideramos o efeito da ambiguidade em tudo que nos cerca. Como conseguimos navegar ao longo de nossas vidas sem maiores embates, sem grandes desentendimentos, quando não podemos compreender tudo o que nos cerca? Parece fantástico, miraculoso até: se cada um de nós percebe o mundo de maneira tão diferente, tudo deveria contribuir para um caos ainda maior do que o que enfrentamos, para o oposto da ordem. Vale a leitura. Recomendo.