Thales 14/06/2021
Viramundo Viratudo Vira meu coração
"Só Minas Gerais (Minas Gerais!), só Minas Gerais
Poderia ser o palco desta história
Que gravei na memória
E o tempo não desfaz"
Assim que eu acabei "O grande mentecapto" fui correndo ouvir o samba da Imperatriz para 1983, sem dúvida um dos enredos mais mineiros que o carnaval carioca já viu. E da mesma forma que Chica da Silva e o rei da Costa do Marfim só poderiam se encontrar em Minas, nenhum outro estado desse Brasil de meu Deus poderia ser chão e palco da história de Geraldo Viramundo. História essa que, em suma, é uma declaração de amor ao estado de Fernando Sabino, o mais mineiro dos autores - tão mineiro que gostava mais de pão de queijo que de mulher.
Eu simplesmente tô em transe após a leitura desse livro. Ele é lindo, é intenso, é hilário, é emotivo, é erudito e, além de tudo, é uma AULA de como contar uma história. É sem sombra de dúvidas uma das narrativas mais brilhantemente construídas que eu já li, e Sabino faz isso sem ser pedante ou academicista - pouco importa eu chegar aqui e dizer que a obra tem um quê de metaliteratura; o que importa são os deboches que o narrador faz nas notas de rodapé ou as conversinhas que ele tem com o leitor. Ela é tão rica que o autor teve o cuidado de colocar ao final um glossário com todas as referências que a gente encontra: cada poema, cada trecho de clássico, cada monumento histórico, cada político, cada personagem inspirado num mineiro ilustre ou num amigo do autor, são páginas e páginas de referência. Tem até uma "bibliografia" rs
Inclusive deixo aqui registrado que, a partir de hoje, meu sarrafo pra definir uma amizade verdadeira tá marcado na homenagem que Sabino faz a Hélio Pellegrino. Então você me considera um bom amigo? Diz que me ama no meio de seu romance, se não não acredito.
Com tudo isso faz parecer que a gente precisa de um mestrado em mineirices para entender "O grande mentecapto". Jamais. Sabe quando você tá num bar de esquina e tem um velho entretendo os amigos com histórias rocambolescas da infância na roça - toda esquina brasileira tem um bar e um velho assim -? Esse é Fernando Sabino, esse é o narrador que resolve reconstituir as andanças do herói popular Geraldo Boaventura, ou José Geraldo Peres da Nóbrega e Silva, vai saber.
Há quem diga por aí que Geraldo Viramundo é o "Dom Quixote" brasileiro. Nada poderia ser mais falso. O velho Quixote resolve um dia sair com Sancho Pança para enfrentar dragões e exércitos imaginários em busca de uma princesa irreal. Já Geraldo sai de Rio Acima para enfrentar um Brasil extremamente real, com problemas, sutilezas, maravilhas e filhos da puta extremamente reais - ou não, a não ser que cavalos falem ou fantasmas existam.
Esse é o Brasil que mata crianças pobres a troco de nada, em que uma cidade inteira resolve bater numa mulher que deu pra todos os homens casados - e não neles -, que mandava pros manicômios qualquer um que fosse um incômodo para a "ordem pública" ou para os "costumes", que vira as forças de segurança contra a população sem dó nem piedade.
Mas também é o Brasil do barroco mineiro, das orquestras comunitárias, dos estudantes idealistas; é o Brasil de Otto Lara Resende, de Lúcio Cardoso, de Murilo Rubião, de Paulo Mendes Campos, de Drummond, de Ary Barroso, de Guimarães Rosa, de Jorge Amado. Opa, não que esse aí é baiano, e essa é uma resenha de mineirices.
Enfim. "O grande mentecapto" nos mostra o Brasil real e o Brasil possível. Ele prova pra gente que por mais que esse país seja um moedor de pessoas tem muita coisa aqui pela qual vale a pena lutar e sobreviver. E, óbvio, faz a gente se mijar de rir no meio do processo. E chorar também - muito -, c'est la vie.
Leiam Fernando Sabino. Pelo AMOR DE DEUS, leiam Fernando Sabino.