Italo145 23/06/2023
Magnum opus
Falar do Poema Sujo é falar de um magnum opus. Depois desse livro, Ferreira Gullar não poderia fazer nada tão tocante, incisivo, crítico e grandioso. É o tipo de livro que marca não apenas a arte de um autor, mas a arte de um país. Nesta pequena resenha, devo dizer de suas dimensões ontológicas, epistemológicas, éticas e estéticas, já colocando em xeque minha capacidade de fazê-lo, tendo em vista que um bom livro não se esgota em suas questões.
Quando tratamos de ontologia, tratamos da dimensão do Ser. O Ser, em Poema Sujo, é um Ser em falta. O autor, já o sabemos, escreveu o poema em seu período de exílio. Isso dá a significar que a falta do eu poético é uma falta geográfica. Mas essa falta geográfica, de um lugar a que se pertença, é também a falta de um sujeito que não se encontra e, para encontrar-se, revisita seu passado. O problema do eu poético é, nesse sentido, um problema de Ulisses: está obrigado a navegar, de porto em porto, através de seus pensamentos, através de seus vestígios de memória, mas sem encontrar o seu lugar. Nas primeiras partes do livro, uma frase que julgo ser significativa e que se repetirá em outros trabalhos de Gullar: "Que faço entre coisas? De que me defendo?" Um Ser sem lugar é um ser sem compreender. Não se possui razão de existir, e as coisas perdem-lhe o sentido.
A segunda dimensão é epistemológica, da apreensão do conhecimento. O eu lírico de Gullar sabe pelo que está passando? Sabe do que sabe? Não se pode responder a essa indagação. A citação colocada no parágrafo anterior já propõe o movimento de autoindagação que o eu poético faz. E, em um segundo movimento, quando revisita seu passado, dá a conhecer o que, para ele, resume, de sua infância, toda a conquista humana: "Só tijuco e água salgada". O conhecer de Gullar se faz, portanto, nas coisas simples e concretas. Pouco importam as grandes conquistas da humanidade se, na Baixinha, se sofre apodrecendo junto com a lama e se, na vida, vale mais viver o mangue que pensar o mundo inteiro.
A terceira questão é ética, já que pressupõe o compromisso do autor com as classes menos favorecidas. Lapsos do período da escravidão são relembrados. A proposição de racismo por parte do autor, em que o urubu fosse um "crioulo de fraque" não se sustenta quando pensamos que ele relembra um universo de mucamas, escravos e pessoas que eram tratadas com desumanização no período da guerra (resquícios ainda da escravidão). O eu poético se coloca na posição de algoz para representar o desumano, aquilo que não se poderia representar de forma racionalizada sob pena de se perder o valor poético (como, aliás, se faz hoje; as poesias mais parecem um manifesto que uma proposta de representação). Também o faz quando compara a noite na Baixinha a uma noite de apodrecimento. Não é um movimento taxativo, mas de constatação do óbvio: há pessoas que são tratadas de modo desumano e, portanto, a representação é desumana. Não para reproduzir, é claro; mas para fazer pensar através da linguagem poética.
Por fim, a dimensão estética sugere uma escrita de passagem: ao mesmo tempo que há referências às artes poética e musical clássicas (Olavo Bilac, Raimundo Correia, Villa-Lobos...), diz-se que "Nem tuba nem lira grega [...] fala humana, voz de gente, barulho do corpo". Por ser um poema "sujo", a linguagem popular está tão presente que revisita o baixo calão: "língua 🤬 #$%!& na boceta", "azul teu 🤬 #$%!& ". Uma escrita de passagem: revisitação dos antigos, rompimento, escrita do sujo sob um vocabulário poético.
Diante de tudo isso, afirmo que vale muito a pena a leitura. Sou suspeito a falar, porque meu amor por Gullar e pelo Poema Sujo nasce na adolescência. Desde lá, constantemente o revisito e retiro dele novos sentidos, novas cores, novas interpretações e novas possibilidades de saber. A quem lê, sugiro que leia devagar, se quiser em voz baixinha, sentindo cada palavra, cada sonoridade e pensando nas imagens que o autor coloca no texto. Se há o interesse, podem-se encontrar partes do poema recitadas pelo próprio autor. Desde já, desejo, a quem assim o fizer, uma ótima imersão no texto.