Luigi.Schinzari 15/10/2020
Sobre A Educação Sentimental, de Gustave Flaubert
Como é difícil analisar de forma profunda e reflexiva as mudanças pelas quais nossa sociedade passa. Com o distanciamento histórico de um fato, suas respectivas análises começam a florescer em um campo maior de cultivo e com maior qualidade; sabendo como tudo transcorreu e com as emoções do momento estando mornas, torna-se trabalho muito mais fácil e satisfatório, provavelmente. Mas em A Educação Sentimental (L'Éducation sentimentale, 1869), o autor francês Gustave Flaubert (1821-1880) -- vivendo em um século de grandes acontecimentos como as Revoluções de 1830, de 1848 e a proclamação da Segunda República, seguida pelo golpe do até então presidente Napoleão III, iniciando o Segundo Império Francês -- analisa a situação política do país direto do fervor sendo vivenciado em sua vida com uma profundidade e grau de discussão inalcançável por mãos tão hábeis quanto a dele, mesmo por aqueles com a distância histórica a seu favor.
A história do jovem Frédéric Moreau, jovem que pretende realizar seus sonhos em Paris enquanto cresce junto a um grupo de conhecidos e amigos com as mais distintas visões de mundo e classes econômicas entre 1840 e 1867, é das mais amplas da literatura francesa. Enquanto ama platonicamente uma mulher casada e têm arroubos morais de servidão eterna a sua musa idealizada, cede aos impulsos hedonistas e se entrega aos prazeres carnais e boêmios oferecidos aos montes pela capital francesa; junto às contradições de sua vida, vivencia momentos cruciais para a história da França, muitas vezes in loco: passa pelos conflitos nas barricadas pelas ruas parisienses durante as Revoluções de 1848 que culminaram no fim da monarquia; discute as questões do parlamento durante as rodas com seus amigos; vê-se dividido entre os republicanos e os monarquistas, moldando suas opiniões de acordo com o meio em que se encontra, sempre visando suas intenções a atingir altos patamares na sociedade francesa. Não podemos nos enganar ao ler o título e, talvez, acreditar ser (apenas) uma história de amor: é o romance mais politizado do autor de Madame Bovary (1856).
O jovem protagonista, presa de seus impulsos e desejos de amor, riqueza e glória, passa, por meio da escrita detalhada mas corrente de Flaubert -- são muitos os acontecimentos ao longo de um único capítulo --, das mais extremas emoções aos atos mais desesperados, sendo um círculo vicioso iniciado pela ambição de Frédéric. Os acontecimentos políticos que o rodeiam e perscrutam suas relações e discussões começam a pesar sobre a vida do jovem Frédéric -- que acompanhamos até deixar sua juventude para trás --, sufocando todas as personagens e moldando, de forma onipotente e impassível, suas histórias, seja de forma positiva ou negativa. O romance, absoluto em seus tópicos mas despretensioso em suas conclusões, é uma retratação fidedigna de seu período, e o jovem Frédéric tornou-se um avatar do espírito francês de sua época: confuso, apaixonado e culto. A escrita do autor, não à toa sendo um dos maiores clássicos da história da literatura, proporciona isso ao ilustrar as páginas com acontecimentos infindáveis, explodindo cada capítulo com fatos e mais fatos da turbulenta vida do protagonista, sendo tal ritmo um paralelo com a vida pública francesa.
Dando prosseguimento a abordagem psicológica de Stendhal em seu O Vermelho e o Negro (1830), Flaubert, valendo-se das experiências vividas por ele próprio, posiciona o leitor na cabeça confusa de Frédéric: notamos seus anseios, delimitamos sua moral e também quando vai de encontro a elas com seus desejos momentâneos. São banquetes, reuniões, encontros clandestinos, passeios pelas ruas; discussões a porta trancada até discursos ao público -- todos os momentos são painéis que compõe, a pequenas pinceladas, o quadro psicológico de Frédéric Moreau e, principalmente, a grande composição feita por Flaubert da França de meados do século XIX e, consequentemente, dos franceses, com seus desejos, promessas e anseios de um futuro idealizado pelas reformas e revoluções, culminando, quase sempre, em frustrações e decadência -- e assim a roda gira.
É a frustração, aliás, sentimento principal que Frédéric teima em dar sua devida importância: frustra-se com a realização precária de suas ideias após desviar de seus caminhos; por conta de sua pressa, busca caminhos diversos e, consequentemente, acaba se deparando com a dura frustração. Renegando suas raízes e anseios primordiais, Frédéric abandona suas verdadeiras amizades, seus ideais e a própria promessa que era quando jovem -- juventude, aliás, que parece ser prorrogada eternamente por Flaubert de forma irônica: os anos passam e continuam a tratá-lo por jovem, sendo uma alcunha que reflete sua ineficiência e fracasso a cada ano que, rapidamente, passa e nem ao menos percebemos em meio a enxurrada de acontecimentos que banham o romance.
Diferentemente de Frédéric e de seus ricos coadjuvantes, ao ler o livro não haverá frustração. Um romance atemporal, mesmo tão calcado em seu tempo (por mais paradoxal que possa parecer), tem o poder de refletir as angústias de todas as épocas com pequenos matizes que a situam em um momento específico da trajetória humana, no caso deste livro sendo na Paris de meados do século XIX. Mas, retratando temas universais e eternos, e, principalmente, entendo-os como Flaubert faz, é a chave para que um romance como esse continue sendo relevante mesmo após mais de uma centena de anos de sua escrita. Resta ao leitor de A Educação Sentimental se deleitar com o quadro pintado por Flaubert da França daquele período, com suas idiossincrasias, debates infrutíferos por parte dos personagens, pretensões frustradas e a eterna estagnação política, independente de quantas revoluções possam haver -- qualquer semelhança com nossa história fica ao encargo do leitor mais perspicaz e que não é presa de ideologias, visando entender o mundo a partir de um todo e não só de visões políticas únicas e vazias que limitam a plena visualização desse grande quadro; foi o que Flaubert fez em A Educação Sentimental, ao escrever um romance politizado mas jamais ideologizado, como alguns teimam em confundir.