jota 27/06/2016Há males que vêm para piores. Ou não...Considerada a obra-prima do italiano Giuseppe Berto (1914-1978), o livro O Mal Obscuro pode ser classificado como autoficção uma vez que tem muito da vida do autor, da infância até os quarenta e tantos anos na maior parte. Mas Berto se vale de um narrador, um escritor e roteirista de cinema como ele próprio, para falar sobre o mal que o afligiu durante muito tempo. Ou, pensando bem, males, fobias, obsessões e manias: talvez as coisas fiquem melhor no plural no caso de GB. Em Nota do Autor, no final do livro, ele reconhece: "(...) O Mal Obscuro é mais ou menos o relato da minha doença."
O livro publicado pela Editora 34 no formato 16 x 23 (grande) parece ter muito mais do que suas 334 páginas, uma vez que tem poucos capítulos e eles são imensos, assim como são intermináveis seus parágrafos em que as frases em vez de pontos são separadas por vírgulas apenas. Um parágrafo pode começar numa página e seu ponto final vir somente depois de dez páginas ou mais. Mas não tem nada parecido com o Ulisses de James Joyce e as livres associações em que predominam "os pensamentos que se ligam uns aos outros em aparente liberdade"; em Berto eles fluem com ordem, lógica e clareza. Ele quis assim, não apenas para se diferenciar do autor irlandês, também para ser plenamente entendido pelos leitores, claro. E conseguiu.
Quem leu o excelente Extinção, de Thomas Bernhard, vai sentir certa familiaridade nos monólogos de um e outro narrador, até mesmo no reconhecimento da relação conflituosa com o pai (e a morte do pai) como um dos motores que desencadeiam o fluxo narrativo tanto do italiano quanto do austríaco. Lembrando que Berto lançou seu livro em 1964 e o de Bernhard apareceu mais de duas décadas depois, em 1986. Berto reconhece suas maiores influências em dois escritores italianos mesmo: Italo Svevo (do imperdível A Consciência de Zeno) e Carlo Emilio Gadda (que escreveu o posfácio de O Mal Obscuro, presente nesta edição), de quem nada li até agora.
Curioso é que escrever este livro foi não exatamente sugestão de algum amigo ou editor literário, mas do psicanalista freudiano Nicola Perroti, que tratou Berto e seu mal obscuro, agora explicado por ele como uma neurose profunda que o impedia de ir além do terceiro capitulo de um livro (sua "obra-prima") que tentava escrever. E que também se manifestava fisicamente em muitas ocasiões, com Berto sofrendo de diversas doenças reais ou imaginárias, males esses sempre diagnosticados e tratados de modo errado por outros profissionais. As coisas ficaram piores quando o narrador se casa com uma garota (a "menina", como ele a chama) bem mais jovem que ele, que engravidara e agora tem de sustentar, também à filha que nasce depois.
Mas se alguém pensa que de tudo isso é feito um drama, que esses fatos se tornem um peso para o leitor conhecer, ainda mais da forma com que as coisas são narradas (as tais frases intermináveis), está muito enganado. Verdade que as pessoas com depressão, neurose ou coisa parecida podem se tornar ou são de fato repetitivas e aborrecidas quando relatam seus problemas, mas isso ocorre muito pouco no caso de GB. Somos compensados com muito humor, com observações irônicas sobre os pais, família, escola, médicos e hospitais italianos e outras instituições do país. Sua história no fundo é bastante engraçada em muitos trechos, especialmente porque o personagem ri de si mesmo, sabe que muitas vezes está sendo ridículo, muito mais do que um doente de verdade.
A parte sobre sua infância e adolescência, a descoberta do sexo, os problemas financeiros da família, seu desempenho escolar, a participação na guerra da Abissínia etc., tudo isso contado bem próximo do final do livro, foi das coisas mais interessantes de se ler. Mas o livro todo é muito bom mesmo e se o leitor tiver um pouco de paciência com o modo empregado por Berto para contar sua história só vai apreciar mais ainda O Mal Obscuro. Que para mim se tornou livro favorito.
Lido entre 21 e 27/06/2016.