Sergio Carmach 22/12/2011
Obra de gênio
Na década de 40 do século XX, a cidade argelina de Oran começa a ser invadida por ratos agonizantes. A cada dia, maior é a pilha de animais mortos. Não demora para os habitantes da localidade também começarem a perecer, vitimados pela terrível peste negra. Quando as autoridades percebem a situação sair de controle, fecham as portas de Oran. Quem estava fora não pode retornar, tornando-se um exilado; quem estava dentro não pode sair, tornando-se um prisioneiro. Publicado em 1947, a obra chegou a ser encarada como uma alegoria da II Guerra Mundial, evento histórico no qual a peste nazista ocupou países, criou campos de concentração e infectou o continente europeu.
O livro, que rendeu o Nobel de Literatura em 1957 a seu autor, é uma obra magistral em todos os sentidos. Pode-se dizer que Camus era um escritor que sabia filosofar e um filósofo que sabia escrever. E é sob esse enfoque filosófico que A Peste deve ser entendido. Quem resolver lê-lo com a cabeça oca, ou em busca de um romance comum, não assimilará a essência do livro e irá se decepcionar. Por outro lado, os leitores de espírito reflexivo encontrarão um campo vasto para todo tipo de ponderações. Quanto à linguagem, apesar de não ser complicada, é fina e bem trabalhada, sendo mais uma fonte de prazer para os amantes de textos bem construídos.
O que é mais valoroso para o espírito? A felicidade pessoal ou ajudar a coletividade em um momento de crise? E do que o espírito mais necessita nesse momento de crise? Dos dogmas religiosos ou do pensamento racional? É interessante notar que essas questões envolvem os personagens centrais, inclusive o protagonista, Bernard Rieux, médico que se une a um esforço para debelar o mal, mesmo sendo esse mal algo de difícil compreensão, tanto do ponto de vista físico quanto espiritual.
Como dito, A Peste tem um texto farto em filosofia, e as citações possíveis, com suas respectivas interpretações, seriam capazes de gerar um outro livro. Os trechos relacionados a Deus chamam bastante a atenção, merecendo destaque os sermões do padre Paneloux e a visão racional de Rieux. O médico, indagado se acredita em Deus, explica: “se acreditasse num Deus todo-poderoso, deixaria de curar os homens, deixando a Ele esse cuidado”, filosofando mais adiante: “Visto que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez valha mais para Deus que não acreditemos n`Ele e que lutemos com todas as nossa forças contra a morte, sem erguer os olhos para o céu, onde Ele se cala.”
Quanto aos sermões de Paneloux, o primeiro é de uma genialidade única. As palavras colocadas na boca do padre por Camus mostram como o autor sabe ler a alma humana. O discurso do sacerdote mostra a visão clássica do cristão: a natureza em fúria é uma resposta divina à culpa humana. Posteriormente, Paneloux assiste à terrível morte de uma criança e diz: “Isto é revoltante, pois ultrapassa a nossa compreensão. Mas talvez devamos amar o que não conseguimos compreender.” Assim, no segundo sermão, já mais fustigado pela tragédia, ele abranda o tom e torna-se menos enfático sobre a culpa do homem, dizendo “que havia coisas que se podiam explicar em relação a Deus e outras que não se podiam.” Bem... Talvez se possa dizer que o padre, com essa frase, transformou a humildade trazida pela razão em uma espécie de arrogância da fé.
Para fazer jus ao livro - que trata de inúmeros temas, como justiça, suicídio, amor, essência humana, religião - e colocar aqui tudo o que é digno de nota, a resenha precisaria ocupar páginas e mais páginas. O texto de A Peste é riquíssimo e esta singela análise sequer abordou 1% de tudo o que há nele e de tudo o que pode ser extraído dele. Para finalizar sem mais delongas, talvez o mais importante a se dizer seja o seguinte: se o racionalismo filosófico de Camus serve para provocar descrença em Deus, por outro lado é muito mais forte para despertar a fé nas qualidades do homem.
http://sergiocarmach.blogspot.com/2011/12/resenha-peste.html