Sérgio 20/04/2013Fantástico BorgesTítulo original: El Aleph
Gênero: Contos / Realismo Fantástico
Ano de lançamento: 1949
Ano desta edição: 2008
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 160
Idioma: Português (tradução de Davi Arrigucci Jr.)
Citação: "Era muito religioso; acreditava ter com o Senhor um pacto secreto, que o eximia de agir bem, a troco de orações e devoções."
Jorge Luis Borges é um dos maiores nomes da literatura mundial. E não há nada mais que precise ser dito sobre ele.
"O Aleph" é uma das obras essenciais para quem quer conhecer este expoente do realismo fantástico, junto com outros escritores de língua espanhola, como Julio Cortázar e Gabriel García Márquez. E em praticamente todos os contos de "O Aleph" este é o aspecto mais marcante: a inserção de um elemento fantástico de uma maneira que a história não se torne absurda, de maneira tênue em que o sentimento de estranhamento por aquele novo elemento quase não existe. O fantástico se torna aceitável na escrita de Borges.
O primeiro conto, "O Imortal", traduz bem isso, ao apresentar o encontro do protagonista, um general romano, que parte em busca da Cidade dos Imortais. Tais imortais, ele vem a descobrir mais tarde, incluem em suas fileiras ninguém menos que Homero, escritor da Ilíada e da Odisseia; a imortalidade física representada no conto acaba se revelando uma homenagem aos clássicos literários, e à literatura em si. Aliás, cabe aqui um adendo: literatura, filosofia, mitologia e história são elementos referenciados o tempo todo por Borges, tornando a leitura da obra difícil para quem não tenha o mínimo de conhecimento nessas áreas, e, mesmo com o mínimo, a sensação de "estar perdendo algo" é constante durante a leitura. É uma leitura difícil, mas não impossível. É um livro para ser relido a cada dez anos, para apreciação de suas múltiplas camadas com o conhecimento acumulado.
Temas como a perda da memória e de identidade são comuns em seus contos: em "A Busca de Averróis", um árabe tenta traduzir a "Poética" de Aristóteles, e na impossibilidade de encontrar termos semelhantes a tragédia e comédia em sua cultura, simplesmente deixa de existir; em "Aben Hakam, o bokari, morto em seu labirinto" uma morte inexplicável esconde uma trama de roubo de identidade; em "O Imortal", o protagonista se confunde com os fatos que ele próprio acabou de narrar; em "A Outra Morte", Pedro Damián, que morreu velho em uma cidade, é lembrado como o covarde que fugiu de batalhas por uma pessoa, ou pelo corajoso soldado que se sacrificou valorosamente enquanto jovem por outra (enquanto a primeira parece ter suas lembranças alteradas repentinamente). Além disso, há a exploração da figura do duplo: em inúmeros contos temos personagens que, de alguma maneira, se espelham em outros, sejam personagens parecidos ou diametralmente opostos. Em "O Imortal", há o protagonista e Homero; em "O Morto", Benjamin Otálora e o homem que ele deseja substituir, o chefe de seu bando, Azevedo Bandeira (este conto, por sinal, um espetáculo de concisão: sete páginas que poderiam facilmente se tornar um romance); em "Os Teólogos", um intelectual sempre à sombra de seu rival, em duelos de retórica, também abordando aqui a questão da identidade; em "História do Guerreiro e da Cativa", há três personagens relacionados: o guerreiro de um antigo poema, e a mulher inglesa do presente do escritor que abandonaram seus povos e foram assimilados por novas culturas, e essa mesma mulher e a avó de Borges, que se sente completamente excluída numa terra estrangeira; em "A Casa de Astérion", o duplo aparece até mesmo na forma de um amigo imaginário (este conto, por sinal, um dos mais interessantes, com suas referências ao mito de Teseu e Ariadne); até mesmo em "O Zahir" ele consegue inserir a temática do duplo ao falar de uma obssessão por uma moeda; e "O Aleph" em si, a letra hebraica, representa "um homem que aponta para o céu e para a terra, indicando que o mundo inferior é o espelho e o mapa do superior"; e a lista prossegue.
Borges também abre espaços para contos com personagens da América do Sul, como "O Morto" e "Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)", em que um soldado se junta a um desertor, Martín Fierro (citado novamente em "A Outra Morte"), e que vem a ser um poema épico, pináculo da literatura argentina, sobre um gaúcho dos pampas que deserta e passa a combater milícias em seu país. Outra referência literária, desta vez bastante ligada à identidade argentina.
O livro conclui com o conto que dá nome ao livro, fechando um ciclo e fazendo, novamente, uma homenagem à literatura: o Aleph do livro é uma espécie de ponto no espaço, "onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do planeta, vistos de todos os ângulos". Este Aleph, descoberto por um rival de Borges (personagem deste, e de outros contos, e neste com seu duplo!) em seu porão, seria a fonte para sua inspiração literária. Um conceito bastante complexo, para o qual Borges deu a seguinte explicação: "O que a eternidade é para o tempo, o aleph é para o espaço". Se esse ponto, ao invés de Aleph, fosse chamado Borges, poderia ser bastante apropriado.
P.S.: Agradeço imensamente aos membros do Clube de Leitura da Companhia das Letras, cujas opiniões durante o debate sobre o livro foram descaradamente usadas nesta resenha. No próximo encontro, "As Virgens Suicidas"!
Resenha originalmente publicada em: http://catharsistogo.blogspot.com.br/2013/03/o-aleph-jorge-luis-borges.html