EuLeitor 28/08/2024
Dom Casmurro: entre traições e superinterpretações (André Benedetti ou Benê)
Advertência: ao leitor que tiver firmes posições no polêmico embate envolvendo a questão da traição de Capitu; em particular, àquele se sente feliz em fazer parte do time que defende a moça com grande entusiasmo, peço-lhe, por favor, que não leia este texto. Melhor é esquecê-lo, fazer uma outra coisa. Se, apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo por eventuais ataques de pelanca.
Minha proposta aqui não é exatamente resenhar Dom Casmurro, de Machado de Assis; mas, antes, esmiuçar e criticar o tal debate, já tão desgastado.
ALERTA DE SPOILER
Antes de mais nada, é importante que busquemos saber a origem desta controvérsia. Aparentemente isso se deu a partir de um estudo da americana Helen Caldwell, publicado em 1960, no qual a professora chama a atenção para a influência shakespeariana em Dom Casmurro. Segundo Caldwell, o nome do protagonista, Bento Santiago, seria a junção de Santo + Iago. Iago, na peça Otelo, de Shakespeare, representa o mal. Portanto, Dom Casmurro, o Bentinho, teria em si tanto o bem quanto o mal; e da mesma forma como Otelo gradualmente se afasta e enlouquece em relação a Desdêmona, até matá-la, o mesmo acontece com Bentinho em relação a Capitu, até despachá-la para a Suíça.
Não cabe a mim fazer um levantamento histórico preciso. Parece-me quase impossível que durante 60 anos, ninguém tenha percebido Otelo em Dom Casmurro (publicado em 1899). Principalmente porque, num dado momento do romance, o próprio Bentinho vai ao teatro e assiste, segundo ele mesmo, “justamente Otelo”. Há um capítulo inteiro sobre isso. Mas tudo leva a crer que, de fato, foi Helen Caldwell quem inaugurou essa idéia de “girar a mesa”, e colocar em xeque Bentinho e sua narrativa.
É claro que Caldwell foi extremamente perspicaz e feliz ao perceber essas relações entre a peça de Shakeaspeare e o romance de Machado. Não há dúvidas sobre isso. Todo grande gênio deve ser lido nas linhas e nas entrelinhas; e assim Caldwell o fez. Contudo, derivar disso a absolvição de Capitu é uma extrapolação, um erro; e que muitos, aparentemente ávidos de uma vontade, talvez inocente, de querer revirar a obra mais do que se deve, estão incorrendo até hoje.
A começar, sim, Dom Casmurro tem em si tanto o bem quanto o mal. Mas isso não significa que Capitu seja Desdêmona. Ao contrário, tudo em Machado de Assis, inclusive sua fase mais romântica, tende a correr para o Realismo. Ou seja, se encontramos em Shakespeare personagens arquetípicas, como Desdêmona, Otelo e Iago — respectivamente, Deus, o Homem maculado e Satanás —, o mesmo não ocorre em Machado. O universo machadiano é diferente, composto justamente por personagens mais parecidas com as reais, de nosso cotidiano comum; que carregam em si, portanto, o bem, o mal, problemas, confusões, e uma infinidade contradições. Pôr em dúvida a traição de Capitu seria, basicamente, chamá-la de Desdêmona, o que ela não é. Só isso já bastaria para dar um fim nesse debate.
Mas é óbvio, e para isso não é preciso ser vidente, que os amigos da discordância hão de discordar. Vão retorquir dizendo que associar Bento a Otelo e Iago, não significa, necessariamente, associar Capitu a Desdêmona. Ou então, para os mais ousados, que nada impede Dom Casmurro de ser, quem sabe, uma espécie de exceção, um ponto fora da curva na obra do autor. Consideremos (ainda que seja mais simples e mais sensato aceitar a traição, sob pena de tornar Capitu um ser imaculado, e ainda que tudo isso não passe de teimosia, de insistência vazia em um assunto superado, consideremos).
Seja por um lado, seja por outro, cedo ou tarde esbarraremos no clássico argumento de que, uma vez que a narrativa parte da perspectiva de Bentinho, nunca se saberá ao certo; portanto, a traição seria, ao menos, duvidosa. Ora, se a narrativa parte de Bentinho, e nela é possível colher evidências pró-Capitu, então esta é mais uma evidência pró-Bentinho. Todos os famigerados detalhes ao longo da obra: o nome Casmurro como jocosidade da vizinhança, as semelhanças entre Capitu e a mãe de Sancha, as inseguranças de Bento, a falta de uma prova cabal sobre a traição... Tudo isso, e quaisquer outras informações, nós descobrimos pela voz do próprio narrador. Ou seja, das duas, uma: ou Bentinho é uma espécie muito particular de maluco, que escreve em favor próprio, mas vai salpicando, aqui e ali, evidências contra si mesmo, sabe-se lá por quê; ou... Ele simplesmente está sendo sincero. Muito mais sensato este do que aquele, não é mesmo? E ainda assim, não faltarão intérpretes bastante criativos, dispostos a “viajar na maionese”, fazendo um esforço imenso, querendo porque querendo “pegar o narrador no pulo”. Mas falando em sinceridade...
Devo chamar a atenção aqui para algo que tem passado bastante despercebido: o outro romance de Machado de Assis, também célebre, Memórias Póstumas de Brás Cubas, certamente nos ajuda a iluminar este imbróglio. [ALERTA DE SPOILER PARA MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS.] “[...] não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor”. Assim começa Brás Cubas a nos contar de sua vida, pelo seu fim; e que não vai passar, na verdade, de uma história bastante comum, desinteressante até, de uma pessoa típica da alta sociedade brasileira do século XIX, que no fim das contas, não fez nada. Note bem: a vida do narrador foi sem graça, não o romance! Brás Cubas, uma vez morto, já pode ser sincero. E é a partir daí que surge o brilho da obra e a genialidade do autor aparece. Esta é a cara de Machado: contar uma história que acontece por dentro, da mente que borbulha, que cria ramos, que vai, volta, e conduz a personagem em sua trajetória. Curiosamente — e não coincidentemente —, Brás Cubas é oriundo de uma classe onde as aparências importam. Agora, porém, ele já pode nos contar tudo, toda a verdade. Não há máscaras, não há mais por que fingir. E ora, não seria esta a mesmíssima (obrigado, José Dias) situação de Dom Casmurro? Bentinho, agora velho, sem esposa, sem família, nem amigos... Está na hora de falar, de abrir o jogo, de nos contar exatamente o que foi que aconteceu — e, quem sabe, de justificar para nós os motivos de seus “hábitos reclusos e calados”. Inclusive, de nos contar que fazia viagens à Europa, fingindo visitar Capitu, com o intuito apenas de manter as aparências de casado. É claramente uma confissão. Nenhum dissimulado contaria quase ter dado veneno a uma criança — e ainda com esta o chamando de papai!
Quando se joga total desconfiança sobre o interlocutor, seja quem for, ainda mais logo de início, acaba-se com qualquer possibilidade de diálogo. E é exatamente isso que acontece quando — no capítulo um! — os argüidores de Bentinho dizem que “casmurro”, no dicionário, além de “ensimesmado”, significa também “turrão”; o narrador, portanto, estaria nos enganando desde o começo. Muito criativo. Mas não parece se quer passar pela cabeça dos que leram até o fim, que um homem velho, traído e frustrado, só pode mesmo é ser amargurado, ser casmurro. Quando despertamos dessa hipnose de ver coisa onde não existe, damo-nos conta do tamanho dessa bobagem. É como chamar Brás Cubas de mentiroso, já que mortos não escrevem. É uma injustiça. Uma pena que a boa-vontade dos leitores venha sendo grande com Brás, enquanto que, com Dom Casmurro, só se tenha mesmo é a “boa-vontade” de colocá-lo contra a parede. Nos livros — e na vida — é um erro não darmos ouvidos ao outro; e isso vale para Dom Casmurro. Se a minha desconfiança é total, qual o sentido de se ler, qualquer que seja?
Toda interpretação deve ser feita na medida, nem para mais, nem para menos. É preciso, portanto (e digo isso como um apelo), o cuidado e a delicadeza de quem carrega uma bandeja de cristal. Destrinchar uma obra pode ser tentador; mas espremê-la, torcê-la além da conta, é incorrer, inevitavelmente, em superinterpretação. É um equívoco, um erro literário. Devemos sim interpretá-la, mas até certo ponto: o ponto certo; e optar pela hipótese mais lógica e translúcida. Existe até um princípio filosófico para isso: basicamente, a hipótese mais simples, desde que não seja simplória, tende também a ser a correta. Por exemplo, é possível arranjarmos mil desculpas para achar que a Terra é plana; mas podemos simplesmente aceitá-la como redonda. (Não faz sentido adentrarmos muito nisso, mas aos interessados, procurem por Navalha de Ockham.) E o que não faltam são interpretações das mais exóticas para Dom Casmurro: que Bentinho trai o leitor, que Bentinho tinha uma paixão reprimida por Escobar, que Bentinho escreve por peso na consciência... O que é a verdade? Não seria tudo isso simplesmente um efeito colateral da escrita machadiana? O homem, o gênio, vai tão profundo nas personagens, em seus pensamentos, com tantos detalhes, em tantas fotografias, que acaba abrindo, de forma involuntária, portas interpretativas das mais inesperadas. Essas hipóteses, porém, apesar de muito criativas, e aparentemente possíveis, claramente não passam de um mal entendido; um mau uso de uma estética sofisticada, dotada de nuances, como é a do gênio Machado de Assis.
Tudo nos leva a crer que a “traição” mesmo, é que as pessoas têm aberto o livro já contaminadas pelo viés da discórdia. Se antes de Helen Caldwell não existia todo esse discurso sobre uma Capitu inocente, talvez seja porque o texto naturalmente nos leve a isso; e este é um dado que não pode ser ignorado. As semelhanças entre Ezequiel e Escobar são tão gritantes que nem Capitu as pôde negar. É aquela história: “Tem cheiro de cocô, tem cara de cocô, tem cor de cocô, textura de cocô, parece cocô... Mas vamos provar para que possamos ter certeza...”. Quem não aceita tal fato está para o sujeito que pede recibo como prova em caso de corrupção. Se fosse casado com Capitu, acabaria encontrando Escobar em sua cama, e vendo os dois nus, duvidaria; afinal, no Rio de Janeiro faz muito calor.