Fabio.Nunes 25/06/2024
Inacabável
Dom Casmurro - Machado de Assis
Editora: Antofágica, 2020.
Dom Casmurro é tida como uma das obras-primas de Machado de Assis e, logicamente, da literatura nacional. Não é por menos.
Eu provavelmente devo ser um dos raros a nunca tê-la lido antes, enquanto jovem ou adolescente.
Mas eis que o dia chegou! E aí a pergunta não quer calar: Capitu traiu ou não traiu?
Antes de responder saiba: este livro é narrado por Bentinho, o próprio protagonista. Portanto, é um narrador cheio de vieses e, consequentemente, não confiável. Não consigo entender como foi demorar 60 anos depois da publicação do livro para que alguém ousasse perceber isso. Aliás, eu até entendo. Quem teve essa percepção foi uma mulher (Helen Caldwell).
Bentinho era um homem fruto do seu tempo, dono de posses, herdeiro, moralista, o famoso playboy do final do século XIX e início do século XX ? e isso ainda numa sociedade escravocrata, desigual, hipócrita e misógina, em que o papel da mulher era ser propriedade do homem, servindo-o no lar. Eis que a ficção imita a realidade e a sociedade brasileira à época recebe este livro confiando piamente em seu narrador (um homem rico ? branco talvez).
E eis por que a pergunta sobre a traição é feita: basta a palavra do homem para concluirmos a culpa ou desconfiança da mulher. Diga-se de passagem, uma mulher sem lugar de fala ao longo da obra, posto que jamais foi narradora.
Portanto, de pronto, a pergunta sobre a traição nem deveria ter sido feita.
Além disso, há uma nuance de ordem psicológica que gostaria de chamar atenção.
Imediatamente antes de Bentinho começar a desconfiar da traição de Capitu com seu melhor amigo Escobar, ele é quem tem uma espécie de ?affair? com Sancha (esposa do amigo).
?Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão dela apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume. (...) Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de pecado.?
Carregado de culpa moral (lembre-se de que ele é fruto de seu tempo), ainda sofre no dia seguinte o choque com a notícia da morte de Escobar por afogamento. O amigo morto e ele desejando a viúva no dia anterior. Qual não deve ter sido a dor moral de viver digladiando-se com essa culpa!
Mas Bentinho, como você já bem sabe, é fruto do quê? Do seu tempo.
Um dia, pouco depois da morte de Escobar, Capitu lhe dirigiu a palavra falando do filho:
?Você jé reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita? (?) Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto Escobar.?
Veja aí o germe de toda a tragédia.
Em minha opinião, incapaz de lidar com a própria culpa, nosso protagonista a projeta na própria esposa, a figura que mais ama e de quem mais tem ciúmes (doentios desde tenra idade), acusando-a de traição. A partir desse momento ele é incapaz de olhar o filho sem ver a figura de Escobar ? uma figura que lá não estava, posto que estamos diante de vieses de um narrador em sofrimento, doido para se livrar da própria culpa.
E Machado é tão genial que lá no início do livro faz Bentinho afirmar:
?Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações.?
Ou seja, Bentinho vê o que quer ver, de forma a manter sua posição diante da sociedade, de deus e, acima de tudo de si mesmo. E é muito convincente nisso, em caso de desatenção do leitor.
?O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. (...) Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.?
Para mim não resta dúvida de que essa obra tem muito ainda que ser discutida, gigantesca em nuances que é. Aqui eu só quis pontuar essas duas questões que achei mais relevantes, afetando a qualidade informativa dessa resenha, mas satisfeito por isso ? afinal quem não conhece essa história deve parar tudo e fazê-lo imediatamente.
Uma obra com imensa fortuna crítica, que está longe de se esgotar.