Cristiane.Brasil 26/09/2024
Dom Casmurro
Antes de adentrar na análise deste romance enriquecedor publicado por Machado de Assis em 1899, devo adiantar uma coisa: pouco me importa se Capitu traiu ou não Bentinho, pois esta é uma preocupação superficial, tema que circulou insistentemente pela crítica literária brasileira até a década de 1960 e após, houve uma reviravolta na abordagem que permanece até os dias atuais. Assim, deixo espaço para analisar uma das maiores produções da nossa história literária, Dom Casmurro, romance que carrega em si as ressonâncias sociais do seu tempo histórico e traços do que os estudos literários, por convenção, intitulam de realismo.
O romance é considerado por muitos especialistas como uma espécie de ?premonição freudiana?, pois Machado de Assis antecipa algumas questões que Freud iria apresentar para a sociedade em seu estabelecimento das ideias psicanalíticas, num período praticamente contemporâneo ao machadiano. Narrador em primeira pessoa, Dom Casmurro investe no tempo psicológico e em suas reminiscências, lembranças que vão e voltam sem a ?organização? padronizada do tempo cronológico.
No livro Bento Santigo é o narrador, interessado em ?atar as pontas da sua vida?, unindo relatos da juventude até o momento atual de escrito, fase em que se gaba de ser um advogado que possui propriedades imobiliárias e recursos materiais que lhe garantem uma vida tranquila, diferente do lado emocional, já que é uma pessoa solitária e pouco amarga. Entre os dois momentos de escrita, o passado e o presente, temos as reminiscências da juventude, a relação com os pais, com os agregados, a sua vida no seminário e os ciúmes oriundos do relacionamento com Capitu, amiga de infância que se tornará a grande obsessão da sua vida, tema este, fermento central da narrativa, espaço ideal para Machado de Assis empregar o seu estilo irônico e traçar as devidas críticas sociais próprias ao seu perfil intelectual.
No seminário, período onde passa parte da sua juventude, Bentinho conhece Escobar, filho de um advogado. Ambos tornam-se grandes amigos. Com o passar do tempo, Bentinho abandona o seminário e decide estudar Direito, enquanto o amigo se torna um comerciante de sucesso. Ao passo que o romance deflagra a ambiguidade de Capitu, o moralismo do Brasil no Segundo Reinado e a obsessão crescente de Bentinho, dois casamentos se sucedem, o de Bento e Capitu, união que promove o surgimento de Ezequiel, único filho do casal; Escobar e Sancha, esta, melhor amiga de Capitu, parte de um casamento que traz para a narrativa a filha do casal, Capitolina. Certo dia Escobar, que era um nadador cheio de habilidades, morre afogado num terrível acidente. No enterro, Capitu chora copiosamente, momento que o narrador alega que ?houve nos olhos de Capitu uma maneira de fitar o defunto, tal como o da viúva?, dando a brecha para a narrativa estabelecer a desconfiança da traição. Capitu, a dona do ?olhar de ressaca? passa a ser alvo da obsessão e das acusações de Bentinho, numa narrativa onde vemos apenas o seu ponto de vista.
?Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua.?
Contrariando as indicações do narrador e aceitando a ironia contida na provocação de Bentinho, dois dicionários contemporâneos a Machado, o Caldas Aulete, edição de 1881, e o Antônio de Moraes Silva, edição de 1890, são sucintos. Definem casmurro como teimoso, obstinado, cabeçudo. O nosso contemporâneo Houaiss, edição de 2001, indica a possível origem etimológica do termo, encontrada na obra do filólogo catalão Joan Coromines. Casmurro pode ter sua origem derivada da palavra espanhola cazurro, insociável, malicioso, que por sua vez deriva do antigo caçurro, sujo, ascoroso, desonesto. Nas duas entradas do dicionário, a do século XIX e a do século XXI, repousam maneiras de ler e interpretar o romance. Cabe ao leitor decidir.
A obra ganhou ressonâncias em vários campos da produção cultural e do saber. Em seu processo de criação literária, o realista apresentou o Rio de Janeiro e o Segundo Império sob os melhores aspectos da ironia, sua figura de linguagem mais representativa, além dos paralelos com Schopenhauer e Shakespeare, este último, elo mais importante, preponderante para algumas das interpretações.
Em Dom Casmurro, Machado constrói um narrador-personagem melindroso ao extremo, desequilibrado emocionalmente, cheio de manias, e ao mesmo tempo altamente sofisticado em recursos literários, repleto de devaneios românticos. Não à toa, Bento Santiago por muito tempo seduziu e manipulou a crítica brasileira, ganhando a simpatia de gerações de leitores, que sofriam com ele sua desilusão amorosa. Foram precisos sessenta longos anos para que a desconfiança provocada pelo romance fosse deslocada de Capitu para o próprio narrador do livro.
A ideia foi levantada em um ensaio publicado em 1960 por Helen Caldwell, com o título de O Otelo brasileiro de Machado de Assis. No texto, Caldwell propõe, de forma inédita, uma discussão sobre a confiabilidade do narrador em Dom Casmurro, com base em seus ataques de ciúme e falta de empatia. Para ela, Capitu não traiu Bentinho, pois a principal obra intertextual é o mouro de Veneza de William Shakespeare, e, como se sabe, na tragédia de Otelo, o personagem matou a esposa, cego de ciúme, mesmo sabendo, posteriormente, que ela era inocente.
Em Dom Casmurro, como a ensaísta coloca, temos um ?Iago de si mesmo?. Tradutora da obra para o inglês, ela considerou Machado de Assis uma joia da nossa literatura, trazendo ainda uma interessante observação conteudista: Santiago seria a junção de Sant + Iago, ou seja, o lado bom e mal de cada um, já que na peça de Shakespeare, Iago é o lado mal que penetra na mente de Otelo e estabelece o caos. Interessante, não?
A partir de então, surgiram muitas outras leituras que colocam em dúvida a possibilidade de confiar na palavra de Bento Santiago, levando o debate para um lugar muito mais complexo do que apenas o ?traiu ou não traiu?.
Os personagens mais inesquecíveis são os contraditórios. E, no caso de Dom Casmurro, a contradição é apresentada de forma bastante peculiar. Santiago, homem letrado e conhecedor de grandes obras da literatura universal, sabe muito bem a importância do recurso da incongruência para a construção de um personagem e usa esse conhecimento para manipular o leitor a todo instante.
Com a desculpa de contar toda sua experiência, sem omitir nem mesmo as passagens e pensamentos mais sórdidos, Bento negocia o tempo inteiro com seu interlocutor. Ao apresentar o lado mais sombrio de si, busca receber em troca a confiança de quem lê. Afinal, se teve coragem de contar que chegou a desejar a morte da própria mãe para que pudesse se casar com Capitu, que interesse ele poderia ter em faltar com verdade? Os esforços para demonstrar ao público as próprias contradições fazem da narrativa uma armadilha. Durante todo o romance, Bento parece sussurrar ao ouvido do leitor: pode confiar em mim, amigo. Que motivos teria eu para mentir?
No ensaio A poesia envenenada de Dom Casmurro, o crítico Roberto Schwarz sugere que, para chegar a um entendimento completo do livro-armadilha, são necessárias no mínimo três leituras. A primeira, romanesca, na qual se acompanha a formação e decomposição de um amor; a segunda, de ânimo patriarcal e policial, ligada aos prenúncios e evidências de um adultério tido como certeza; e a terceira, desconfiada, com os olhos voltados para o próprio Bento e sua ânsia de convencer a si próprio e ao leitor da culpa de sua esposa.
É muito interessante a sugestão de Schwarz porque, de fato, quanto mais penso no romance, maior fica a sensação de que não sei quase nada sobre Capitu, o que atrapalha qualquer julgamento que se pretenda justo. Isso porque, quando Bento fala sobre ela, descobrimos muito mais sobre ele próprio do que sobre sua ex-esposa.
Dom Casmurro pode ser facilmente dividido em duas partes. A primeira, grosso modo, trata da luta adolescente pelo casamento. A segunda, da ruína dessa união. A partir dessa divisão, é importante notar como o olhar do leitor se transforma na transição entre uma parte e outra. Tudo aquilo que Bento contou sobre Capitu na primeira fase, e que chegou ao leitor em forma de elogio, se transforma em defeito sob a perspectiva da segunda fase.
No começo da narrativa, a capacidade de controlar e manipular as emoções, de arquitetar planos com base nas estruturas sociais do entorno, dava à Capitu traços de maturidade e personalidade. Já na segunda parte, o narrador faz com que esses traços pareçam, ao leitor, mera manipulação, fruto do desejo de uma escalada social meticulosamente estruturada.
Não podemos esquecer que Bento é advogado por formação. Olhando por esta perspectiva, o livro inteiro pode ser percebido como uma grande acusação, friamente calculada por um charmoso promotor que, na ausência de provas, tenta fazer valer sua palavra através da simpatia que busca despertar no júri ao longo de todo o seu depoimento.
Pela forma como trabalha a dimensão psicológica de seus personagens, Machado de Assis é considerado hoje um dos mais universais entre os autores brasileiros. Ao contrário do que possa parecer, isso não quer dizer que suas histórias poderiam se passar em qualquer lugar do mundo. Os personagens machadianos são todos muito bem fundamentados na época e no contexto
social em que o autor vivia. Em Dom Casmurro não seria diferente. Através da família Santiago, Machado pinta um impressionante quadro da realidade social do Brasil no século XIX, o último país em todo o mundo a abolir a escravidão. Seus personagens são frutos dessa sociedade e refletem suas filosofias e engrenagens.
No século XIX, a população brasileira se dividia em três partes: os proprietários, os escravizados e os homens livres (brancos pobres e os alforriados). Com o trabalho escravo operando como base da produção nacional, sobravam poucos empregos para os homens livres, o que os levava, muitas vezes, a depender das famílias proprietárias. Surgiam os agregados. A dependência, no entanto, não se limitava a esse grupo; funcionava como um fio que ligava todos os setores da sociedade.
Os proprietários dependiam da escravidão para manter suas fortunas, assim como dependiam dos agregados para marcar seu lugar social. Os homens livres dependiam dos proprietários para conseguir qualquer emprego ou para se encostar enquanto agregados.
A família Santiago é proprietária, fato que os coloca bem no centro desse quadro social. Além da mão de obra escrava, contam com os ?favores? dos agregados, como José Dias ou mesmo Prima Justina e também com a reverência e total atenção das famílias pobres ao redor, como no caso da família de Capitu. Todos os personagens do romance, assim como suas motivações, nascem do contexto social da época. E o mais importante de tudo: a maneira como Bento reage aos acontecimentos de sua vida, e o jeito como ele percebe e narra esses episódios, revela ao leitor atento que tal personagem não poderia ter nascido em outro ambiente. Dessa forma, olhamos para os agregados, para os brancos pobres, para os escravizados, os comerciantes, sempre com a visão de quem foi nascido e criado numa família proprietária, e que desde cedo se acostumou a mandar e ser atendido.
Quando observamos o Brasil letrado da época em que Dom Casmurro foi publicado, entendemos perfeitamente por que demorou tanto tempo para que desconfiassem do narrador; grande parte do público leitor era o próprio Bento Santiago, ou pelo menos gostaria de ser. A partir da vida de Bento, o romance traça toda a formação desse quadro social. O próprio relacionamento com Capitu é diretamente atravessado por questões de classe. Na infância, além de lutar contra a promessa de sua mãe para que fosse padre, Bento entra em um combate invisível contra o fato de sua pretendente pertencer a uma classe distinta da sua.
É necessário notar que a solução para nenhum desses problemas parte do protagonista. A dependência dos esforços alheios é um dos traços decisivos para compreender o personagem. No caso do seminário, em momento algum Bento consegue confrontar Dona Glória, sua mãe. Diante disso, apela para que as pessoas ao redor o façam por ele. Capitu toma algumas atitudes, José Dias também. Por fim, a solução vem de uma ideia de Escobar: pagar pelos estudos de um órfão para que este vire padre e, assim, permitir que se cumpra a promessa de Dona Glória. A própria execução da ideia está totalmente atrelada ao fato de ser uma família proprietária: com posses para arcar com os custos, além do renome para ser bem interpretada pelo clero.
Em relação a Capitu, os problemas que poderiam ter surgido por conta do relacionamento foram resolvidos pela menina antes mesmo que Bento abandonasse o seminário. Foi Capitu quem preencheu a lacuna deixada na casa pelo pretendente. Em pouco tempo, ela fez-se necessária à futura sogra, a quem encantava de diversas formas; fosse pela devoção religiosa, pelos carinhos, pelo humor ou pelos cuidados com a casa e com as pessoas. Seus esforços não passaram despercebidos, tanto José Dias como prima Justina comentavam com desprezo o que julgavam ser uma clara tentativa de escalada social através do casamento.
Tudo isso, desde os esforços de Capitu até a percepção dos agregados, é narrado por Bento, como se ele próprio fosse um bilhete premiado. O fato é que, mesmo tendo a intenção de se casar com Capitu desde a adolescência, ele não precisou fazer absolutamente nada para que isso acontecesse. Graças às artimanhas de Capitu, o casal passou ileso por essa primeira batalha social. A segunda batalha, no entanto, seria muito mais dura. Após o casamento, Bento sai da condição de herdeiro para se tornar proprietário.
O confronto provocado pelo abismo entre classes deixa de ser contra os outros e passa a ser contra si próprio. Na primeira vez em que Bento não pode contar com a ajuda de terceiros para lidar com uma questão importante, ele falha miseravelmente na sua resolução. Entre muitas passagens em que, de maneira sutil, Machado pinta esse quadro social, quero destacar duas que me chamam particular atenção. A primeira é relacionada ao ciúme que Bento tem de Escobar. Desde os casamentos de ambos ? Bento com Capitu e Escobar com Sancha ? acompanhamos relatos da relação maravilhosa de que desfrutam os quatro.
Escobar era então um pequeno comerciante que vivia com a esposa no Andaraí, subúrbio da cidade. Não me parece nada aleatório que a desconfiança de Bento face aos gestos do amigo e da esposa só tenham tido início no momento em que Escobar ascende socialmente. Já um comerciante respeitado, ele se muda para o Flamengo, tornando-se praticamente vizinho de Bento e Capitu. É como se, apenas após a meteórica ascensão do amigo, Santiago pudesse ser capaz de julgá-lo como um rival, de vê-lo no mesmo patamar.
A segunda passagem é quase um detalhe no meio do livro, mas que com certeza não foi parar ali à toa. No capítulo LXX, após sair da missa na qual fora pedir perdão por desejar a morte da mãe, Bento vai à casa de Sancha, onde sabe que vai encontrar Capitu. Como é natural em sua vida de proprietário, ele é muito bem tratado por todos, especialmente por Gurgel, pai de Sancha, que insiste que o rapaz almoce em sua casa. Após recusar, com a desculpa de que não avisara Dona Glória, Bento ouve a seguinte resposta: ?Manda-se lá um preto dizer que o senhor fica almoçando, e irá mais tarde.? No capítulo seguinte, acompanhamos a primeira visita de Escobar à família Santiago. Após ouvir seu amigo declinar o convite para jantar em sua casa, Bento reproduz, com ares de homem maduro, exatamente a mesma frase que ouviu do pai de Sancha.
Em pequenos gestos, sempre constantes, o pensamento escravocrata ia sendo introjetado através das gerações. Bento Santiago é filho desse sistema. Não por acaso relembra com tanta nostalgia os tempos do Império, as cantigas dos escravizados de ganho, a sociedade de sua adolescência. Bento chegou a tentar reproduzir exatamente a casa onde viveu a infância. No Brasil pós-abolição, Dom Casmurro é um homem do passado.
?O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.?
Depois de pensar muito sobre a trajetória de Bento Santiago, comecei a perceber que a lacuna à qual ele se refere não consiste em algo que foi perdido, mas sim que nem chegou a construir. Filho único em uma família rica, Bento foi protegido durante toda a vida. Por conta da promessa da mãe, estudou em casa ? o que fez grande diferença em sua história; ele não aprendeu a socializar. Como não foi à escola, onde seria obrigado a enfrentar conflitos com crianças de sua classe social, Bento cresceu com a ideia de que a sociedade existe para servi-lo. Não aprendeu a sentir dor, nem a ouvir ?não?.
A incapacidade emocional do personagem é escancarada em todo o livro. Diante da doença da mãe, da possibilidade de a morte chegar à sua casa, ele pensa no casamento, em como seria boa a chegada dessa morte em função de seu propósito. Em outro momento, no enterro de seu melhor amigo Escobar, Bento sente um avassalador ataque de ciúmes pela maneira como sua esposa olha para o defunto. Ambas as situações representam a mesma incapacidade de lidar com fortes emoções. Bento foge para se proteger. Depois mergulha na culpa, de onde costuma emergir como vítima.
Quando olho para a biografia de Machado de Assis, em comparação à vida de Bento (e tantos outros de seus personagens), tenho a impressão de encarar um espelho invertido. É como se o autor criasse a partir de seu oposto. Homem negro, neto de escravizados, o próprio Machado viveu como agregado de uma chácara em sua infância. Aos quinze anos publicou pela primeira vez no jornal e não parou nunca mais. Escreveu romances, contos, crônicas, peças de teatro, críticas, além das traduções e de uma vasta correspondência. Alcançou o ápice de sua carreira literária aos quarenta anos, com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, romance que revolucionou a literatura brasileira.
Isso para não falar de sua longa carreira como burocrata ou do casamento estável com Carolina. Quando penso no lugar social de onde Machado surgiu e onde conseguiu chegar, naturalmente imagino o quanto de inteligência emocional foi necessário para conquistar esses espaços, até então sempre negados a pessoas como ele. Por essa perspectiva, a ironia, ferramenta literária companheira do escritor, se apresenta também como arma de sobrevivência.
Não foram poucas as vezes que Machado foi acusado de ignorar em seus livros as questões mais urgentes do Brasil em que viveu. Quanto mais conheço sua história e sua obra, mais discordo de afirmações semelhantes. Machado narrou com maestria as tragédias brasileiras. O que parece confundir certas análises é o fato de ter escolhido contar estas histórias a partir dos antagonistas. Só alguém com a biografia de Machado, com seu olhar deslocado e por isso extremamente crítico a esta sociedade, poderia criar personagens como Bento Santiago. A maneira tragicômica como Machado cria e apresenta a vida de seu protagonista revela um olhar que veio da margem, alguém que foi, como cravou muito bem Roberto Schwarz no título de um de seus livros mais conhecidos, um mestre na periferia do capitalismo.
Em Por Que Ler os Clássicos, o ensaísta Ítalo Calvino aponta que ?um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer?. Precisamos concordar, Dom Casmurro é uma obra complexa e pantanosa no que tange aos elementos de uma produção literária, material que já rendeu muitos estudos e ainda pode gerar diversas releituras e controvérsias.
A única certeza que Dom Casmurro nos dá: tudo é incerto, tanto na vida, como nos livros. E essa é a nossa maior libertação.
?Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada.?