Emerson Dylan 09/09/2023
A segunda leitura
Quando eu li Dom Casmurro pela primeira vez, aos 14, minha mãe replicou um comentário de sua professora ginasial, que depois descobri ser um chavão, dizendo que era um livro que devia ser lido três vezes na vida: uma na mocidade, outra na vida adulta, uma última vez na velhice. Cá estou, 15 anos depois, na minha segunda inserção.
Na primeira leitura, eu era um pré-adolescente e Machado veio antes das aventuras amorosas, da leitura obrigatória do ensino médio e daquela minissérie horrível que passou na Globo e que, infelizmente, influenciaria a minha visão das personagens. Reler hoje, adulto, casado, com uma formação acadêmica bem consolidada é, ao mesmo tempo reencontrar velhos conhecidos, com passagens ainda frescas na memória, mas ao mesmo tempo descobrir um universo completamente novo.
Não lembrava que Dom Casmurro é um livro tão engraçado e não imaginava que daria tantas risadas. Essa graça é fruto de uma construção narrativa extremamente ousada; o narrador Bento Santiago constantemente interrompe as desventuras do jovem Bentinho para conversar com o leitor, e nisso compõe tiradas por demais divertidas. Nesse sentido, de uma conversa do narrador com o leitor intrincada com idas e vindas no jogo da memória, a fragmentação em centenas de capítulos é um recurso eficaz: além de dar fluidez à leitura, ajuda a construir o propósito que levou o velho Bento a escrever. A transição da doçura da adolescencidade para o amargor da vida adulta é igualmente impactante. Eu realmente não lembrava do quão incômodo era o terço final de Dom Casmurro. A sensação beira o claustrofóbico. A casmurrice do narrador vai muito além da dúvida sobre o suposto adultério (e eu não lembrava que, pela narração, ele nunca é suposto, mas uma certeza absoluta; a dúvida só aparece na ação do leitor, que confia ou não no narrador); ela dialoga com as transformações de um país, recém republicano, pós escravista, com um eterno ressentimento saudosista das elites, que até hoje perdura. Esse amargor é triste. E Dom Casmurro, que começa sendo uma fofura de obra, termina sendo um relato extremamente melancólico.
O jeito que Machado constrói as personagens a partir da descrição do narrador é outra coisa fabulosa. Vemos toda a família Santiago, as vizinhanças, as amizades da vida através dos olhos do velho Bento. E mais uma vez a graça e o amargor coexistem nessas descrições. O desamor prevalece a partir do momento que todos começam a desaparecer. O que resta é o casmurro.
Por fim, deve-se falar de Capitu.
O que sabemos desta guria? Contemporânea de Emma Bovary e Anna Karienina, gostaria muito que ela tivesse os mesmos ímpetos. Infelizmente, tudo indica que não. A vida em explosão de sua juventude aos poucos é ceifada pelo marido rancoroso. E o quanto ela sai ferida é dolorido demais. Mas não dá para saber nada. Capitu é uma das protagonistas mais antagonizadas da literatura mundial. O que conhecemos dela é o fantasma que assombra o velho memorialista. Pensar em Capitu é pensar: por que Machado de Assis escreveu este livro?
É incrível pensar isso. Pela fortuna crítica, a dúvida da traição só apareceu na década de 1960, com estudos literários transnacionais. Até lá, sempre foi certeza. Mas a dúvida em si só aparece nas últimas quinze ou vinte páginas. O romance é sobre outra coisa. A ascensão e a queda do amor? A frustração da vida adulta perante a mocidade? A sutil relação de classe no crepúsculo do Brasil oitocentista? A autobiografia de um homem mimado? A quebra de paredes do narrador realista? Um estudo sobre o ciúme? Ou uma continuidade nas abordagens machadianas sobre a mente humana (vide O Alienista e Quincas Borba)? Enfim, é um clássico absoluto que deixa margem para muitas outras dúvidas além do que o tornou emblemático seis décadas depois de escrito. Mas a força da personagem Capitu e o espetáculo absoluto que é a construção narrativa são o que tornam Dom Casmurro um clássico. E eu acho, sinceramente, que eu não vou conseguir esperar mais quinze anos para revisitá-lo.