André Siqueira 17/05/2022
Primeiro romance de Margaret Atwood a ter um alcance considerável no mercado e lançar sua genialidade ao público que hoje a admira - quase com unanimidade - como uma das mais relevantes escritoras e intérpretes de nosso período histórico. A primeira versão foi escrita em 1965 e publicada em 1969, 20 anos antes de 'A política sexual da carne'; tema não-tão-sutilmente abordado aqui.
A história gira em torno de Marian, mulher jovem, recém graduada e já inserida em um emprego que considera bom e sólido o suficiente para o resto de sua vida, pensando a partir de sua perspectiva feminina e pela dificuldade de se encontrar um cargo a altura de sua inteligência e capacitação: trabalha em uma empresa de análise de produtos e os limites de suas funções são dúbios, deveria ser responsável por formalizar questionários de avaliação, grupos focais e pesquisas de opinião, mas na prática realizar o serviço de diversos de seus colegas menos capacitados, como por exemplo aplicação de questionários - assustador o quanto isto é atual.
Divide um apartamento simples, espécie de pensão liderada por uma megera-educada-guardiã-dos-bons-costumes que mora no primeiro andar, com uma colega também recém graduada que oferece um contraponto interessante a sua visão engessada de mundo: Ainsley sonha em trabalhar com arte de uma forma abstrata e em constante transformação, ocupa um emprego de fome em uma empresa que conserta escovas elétricas, seu hobby é ler paperbacks de antropologia e psicologia e (re)inventar a si própria de acordo com as teorias que ali enxerga. Participa de um crescente movimento feminista radical, embora a palavra não seja mencionada nenhuma vez durante o livro.
Logo nas primeiras páginas somos apresentados a Peter, último dos solteiros de seu grupo e atual namorado de Marian; por uma série de acontecimentos que não são exatamente controlados por nenhum dos dois o relacionamento se formaliza em um noivado que leva a protagonista a perder, paulatinamente, o controle sobre as próprias decisões e sobre o próprio corpo. O encontro com Duncan, universitário jovem, ingênuo e problemático serve como catalisador do processo de autoconhecimento que leva a protagonista a mudanças radicais em seu próprio comportamento alimentar e na forma com a qual enxerga o mundo que lhe cerca.
As críticas a dominação do corpo como forma de dominar a mente são tão explícitas quanto possível no período, e a ideia do corpo que se rebela contra a vontade de sua mente, inicialmente se recusando a ingerir carne, chegando ao [*****]mulo de não aceitar nada que aparente ser minimamente vivo até alcançar um ponto onde “Finalmente aconteceu. Seu corpo se rebelou contra si mesma. O círculo das comidas possíveis diminui a um ponto, um minúsculo ponto negro, fechando qualquer possibilidade do lado de fora” são geniais e bem anteriores a qualquer obra acadêmica que já tenho lido que toque no mesmo tema - admito minha ignorância sobre o tema e agradeço por quaisquer fontes que rebatam está afirmação.
A resolução vem quando Marian toma as rédeas da própria vida e, em um movimento um tanto quanto antropofágico, oferece um bolo-de-si para o noivo com uma rápida sentença onde demonstra sua repugnância a toda a sociedade patriarcal nele representada. Sem ousar tocar no bolo, ele se levanta e a protagonista, aos poucos, volta a ocupar os contornos de si. Empoderamento em sua mais sólida representação.
Digno de nota que Margaret, no prólogo da edição de 1969, caracteriza a obra como proto-feminista em oposição a feminista, não por falta de paridade temática, mas pelo deslocamento histórico da publicação: em 1965 durante a escrita o termo e o alcance do feminismo no território no Cánada eram bastante limitados e o movimentou só começa a ganhar corpo a partir de 1969. Não sou de acreditar em coincidências e creio que a importância desta obra neste contexto não deve ser menosprezada e merece posição de destaque dentro da produção de Atwood.