Lekatopia 30/03/2016
Tão pesado quanto sensível
Vitamin, mangá em volume único de Keiko Suenobu (a mesma de Limit, cujas primeiras impressões vou postar em breve!), foi um dos lançamentos mais importantes da JBC ano passado e demorei mais do que devia para colocar minhas mãos nele. É um título que, como todo o trabalho da autora, trata de bullying no ambiente escolar.
Se você ler a premissa de Limit e Vitamin, com certeza vai achar que Limit é a obra mais pesada entre as duas. Em termos de premissa pode até soar dessa forma. Mas a brutalidade de Vitamin, que para mim é uma obra muito mais densa e soco no estômago, está justamente no fato desta ser uma história como qualquer outra, um slice of life. Não exige uma situação extrema. Exige dia a dia. Exige estereótipos sociais que perpetuamos sem perceber. Exige slut-shaming. Exige aquele fenômeno engraçado de insensibilidade dos grandes grupos (em que ninguém assume responsabilidade, sempre acreditando que outro irá fazê-lo). Podia ter sido na sua escola ou podia ter sido com você. E qualquer um de nós poderia fingir que não tem nada a ver com a gente se acontecesse no nosso grupo social. É saber que a insensibilidade podia ser sua (ou minha) o que desconcerta, e esse é o grande trunfo de Vitamin.
Vitamin conta a história de Sawako, uma estudante do ensino médio que leva uma existência normal até o dia em que um colega de classe a flagra transando com o namorado em uma sala de aula (aqui a gente precisa abrir um parêntese para eu dizer que fiquei em dúvida se era consentido ou não a conclusão óbvia é que se há dúvida, é porque não é). Depois disso e por esse simples fato, a vida de Sawako se torna um inferno de slut-shaming com desenhos e palavrões no quadro-negro, a camisinhas espalhadas pela sua mesa e agressões no vestiário feminino. O namorado que, claro, termina com ela e ainda diz a todos que não era ele que havia sido flagrado com Sawako passa por algo similar? ÓBVIO que não, afinal Sawako é a garota, ela é que não poderia ser fácil desse jeito. É como as vítimas de estupro, que não deviam ter usado minissaia em primeiro lugar...Esses absurdos parecem familiar com o que a gente escuta por ai?
Não vou contar toda a história, mas Sawako passa por muitos abusos, físicos e mentais, e as cenas são bem chocantes. Tão chocantes, na verdade, que logo após a leitura esse era um dos pontos que eu pretendia colocar na resenha como algo que não me agradou tanto por parecer irreal, um exagero da parte de autora. Ia dizer que se a autora tivesse usado situações menos extremas a história de Sawako talvez ressoasse ainda mais com as pessoas. Mas não vou falar nada disso, sabe por que? Antes de começar a escrever a resenha, fui pesquisar um pouco sobre bullying no Japão porque tem me chamado a atenção a quantidade de obras de TV (doramas) e mangás a respeito e ao que parece o bullying nas escolas japonesas costuma assumir uma nuance muito mais violenta do que estamos acostumados a ver nas escolas brasileiras. Eu fiquei chocada ao ler uma história que recebeu muita cobertura na mídia japonesa, sobre um garoto de 13 anos que se suicidou após ser queimado com bitucas de cigarro, obrigado a furtar em lojas e até a simular o próprio suicídio pelos colegas de classe. Não estou dizendo que não há bullying no Brasil e que ele não toma proporções severas ou violentas, ok? É claro que há e claro que ocorre de várias formas diferentes. Mas me surpreendeu a quantidade de matérias e debates falando sobre o problema no Japão (atualmente a maior causa de mortes no Japão no grupo de 10 a 19 anos é suicídio), o que me fez achar que as coisas realmente assumem um contorno diferente por lá e o retrato de Keiko Suenobu em Vitamin não seja algo tão extraordinário quanto eu imaginava.
Mas voltando a nossa protagonista. Ela resiste, luta, mas eventualmente fica deprimida e não quer mais ir à escola, sair da cama...O único conforto vem dos mangás que ela adora desenhar. Esse apoio da protagonista nos desenhos e o relacionamento dela com os pais são arcos de grande importância na história também. E sendo um único volume de três capítulos apenas, me surpreendeu quantos temas a mangaká conseguiu trabalhar e conectar, sem nunca parecer raso ou algum tipo de pregação.
Eu saí da escola há muito tempo e me formei na universidade há alguns anos, mas não há como não se deixar afetar por Vitamin.
A obra me fez chorar e fazia MUITO tempo que eu não chorava lendo um mangá. Talvez a última vez tenha sido em Fruits Basket, há quase dez anos. Enfim, faz tempo. Mas que sensação boa, catártica sou dessas, adoro chorar em ficção. Chorei com Sawako, quando ela era humilhada, mas chorei principalmente ao ver o relacionamento dela com sua mãe que é realista, difícil, mas cheio de amor.
Não é um mangá perfeito, mas é muito bom. As falhas na verdade não chegam a ser falhas, mas são principalmente restrições impostas pelo número de capítulos da obra (três). Se fosse mais extensa, certamente a autora conseguiria dar mais profundidade aos algozes de Sawako, que para nós são rostos sem nome e sem contexto. Por outro lado, essa talvez tinha sido a intenção da autora desde o começo o bullying é algo, afinal, que está relacionado também a esse sentimento de indiferença ou histeria coletiva que a massa permite, na qual ninguém se responsabiliza ou se sente parte do problema, que sempre é o outro e "do outro".
Leia Vitamin. Não é uma obra para todo mundo, mas é uma experiência ficcional que deveria ser para todos - mesmo que você conclua que não gostou.
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