MF (Blog Terminei de Ler) 05/07/2020
O olhar de uma poetisa diante do horror
Livro “Rompendo o silêncio”, da escritora, poetisa e ativista estadunidense Alice Walker. Trata-se de minha segunda leitura da autora. Eu já havia lido, em meados de 2008, o ótimo e tocante romance epistolar “A cor púrpura”, sua obra-prima, adaptado para o cinema por Steven Spielberg, em um premiado filme.
A AUTORA
Alice nasceu em 1944, numa cidade do interior do estado da Geórgia. De origem humilde, era filha de agricultores e, sua mãe, para completar a renda, também costurava. Caçula dentre oito crianças, foi matriculada na escola com apenas 4 anos de idade. Quando tinha oito anos, em um acidente doméstico, um de seus irmãos disparou uma pistola de ar comprimido, acertando-lhe seu olho direito. Como a família não tinha carro próprio, ela não teve o atendimento médico rápido, o que a deixou permanentemente cega deste olho. Após o episódio, passou a se dedicar mais à escrita e leitura.
Por culpa da segregação racial nos Estados Unidos, Alice, negra, não podia frequentar as mesmas escolas frequentadas pelos brancos. Ela fez seus estudos no único colégio negro da cidade onde nasceu, destacando-se por suas boas notas e se tornando oradora da turma na formatura.
Já na faculdade, no início da década de 1960, passou a se envolver com movimentos em favor dos direitos civis. Quando estava prestes a se formar, teve uma gravidez indesejada e realizou um aborto. O episódio traumático gerou nela tendências suicidas, que influenciaram várias de suas poesias.
Em 1967, conheceu, se apaixonou e casou com um advogado de direitos civis. Posteriormente, mudaram-se para o estado do Mississippi, tornando-se o primeiro casal do estado formado por uma mulher negra e um homem branco. Por isso, foram ameaçados por membros da organização racista Ku Klux Klan. Dois anos depois, nasceu a única filha do casal.
Alice Walker foi a primeira escritora negra a vencer o Prêmio Pulitzer de ficção, por “A cor púrpura”.
O HORROR EM RUANDA, NO CONGO ORIENTAL E NA PALESTINA/ISRAEL
Em “A cor púrpura”, a questão da influência do racismo e da pobreza sobre o destino das pessoas é tratada com maestria por Alice, enquanto narra a história de duas irmãs separadas. Como mulher negra e de origem humilde, nascida num país segregacionista, Alice incluiu sua visão de vida na obra de ficção. Em “Rompendo o silêncio”, da mesma forma, vemos a autora expor suas opiniões. Contudo, sem as amarras do relato ficcional, podemos conhecer na obra a ativista, de fato.
Como dito mais acima, Alice se tornou ativista ainda na década de 60. Com o passar dos anos, sua defesa dos direitos civis nos Estados Unidos atravessou fronteiras e se estendeu para uma defesa dos direitos humanos como um todo, em outros locais do mundo. No livro, Alice viaja pela África, conhecendo Ruanda e o Congo Oriental (a República Democrática do Congo, ex-Zaire). Na Ásia, visita a Palestina, nas regiões ocupadas por Israel.
Ruanda é um pequeno país que ganhou a atenção do planeta inteiro devido ao genocídio de 1994, durante a Guerra Civil, que durou em torno de quatro anos. No conflito, a elite dominante do país, formada pela etnia dos hutus, cometeu todo tipo de atrocidades contra os grupos étnicos tutsi e twa, bem como hutus mais moderados. É possível que tenham morrido entre 500.000 a 1.074.017 pessoas, durante o conflito. Gangues hutus invadiam igrejas, escolas e casas para perseguir vítimas escondidas. Crimes de estupro eram frequentes. Em alguns locais, houve canibalismo.
Alice chega a conversar com uma mulher que teve o marido e outros parentes assassinados. No auge da tortura, teve a perna decepada para servir de alimento aos assassinos. Um dos filhos que sobreviveu, teve que fugir e nunca foi encontrado.
No Congo, o problema foi decorrente diretamente do genocídio em Ruanda. O ditador congolês Mobutu Sese Seko governava com violência seu país e, em relação aos países vizinhos, apoiou o citado massacre aos tutsis. Uma coalizão de nações africanas, sob liderança de Laurent-Désiré Kabila, derrubou o ditador durante a chamada Primeira Guerra do Congo. Mais de 200.000 pessoas morreram no conflito. Entre 1998 e 2003, ocorreu a Segunda Guerra do Congo, envolvendo várias nações. Esse conflito gerou um genocídio, ceifando a vida de entre 2,7 a 5,4 milhões de pessoas.
Por fim, a Palestina vive uma tensão bélica constante desde que foi criado, em 1948, o Estado de Israel. Apoiado pelos Estados Unidos, gradualmente, nas décadas que se seguiram, Israel vem ocupando terras que deveriam compor um futuro Estado da Palestina. Milhões de pessoas, que viviam na região há séculos, foram removidas/expulsas de suas terras. No cotidiano, sofrem com a perda/violação de seus direitos.
Alice estabelece uma analogia entre a situação dos palestinos e dos negros nos Estados Unidos, principalmente durante o período de segregacionismo racial.
O ATIVISMO / CONCLUSÃO
Com o livro, Alice dá voz às vítimas desses conflitos. Ela conduz reuniões com mulheres que sofreram todo tipo de violência. Instiga elas a se abrirem, dividirem o trauma. Alice defende a opinião de que não importa a distância. A empatia não tem fronteiras. Por isso, não mede esforços para ir até o local onde ocorrem os conflitos.
Walker é uma poetisa, mas o livro não é poético. Como poetisa, ela possui certa sensibilidade e isso se traduz na empatia com a qual ela escuta e interage com as vítimas, confortando-as, ajudando no lhe é possível. Como humana, ela dá sua contribuição por meio da empatia. Como escritora, registra o que escuta. Como ativista, tenta chamar a atenção, mobilizar.
O livro é bom no sentido de dar voz às vítimas e se torna ótimo ao colocar o leitor diante do horror que Alice Walker escutou. Senti falta de mais depoimentos de vítimas (o que afeta um pouco minha avaliação da obra): acredito que o choque, nesse caso, seria didático. É um bom chamado de atenção em relação aos direitos humanos, tão negligenciados no mundo atual.