Eric Vinicius 12/05/2024
Uma claraboia no universo de Saramago
Se fosse qualquer outro autor, seria um livro muito bom. Domínio do espaço narrativo, formidável construção psicológica das personagens, escrita concomitante em diversos núcleos. Nesse último aspecto, o romance me fez lembrar bastante de "O Cortiço" (Aluísio Azevedo) e, em alguma medida, até mesmo de "Anna Kariênina" (Liev Tolstói) - dois dos meus livros favoritos.
Mas não estamos falando de qualquer autor. E é justamente pela forma como a obra se apresenta que (ignorando, a princípio, a época em que foi escrita) "Claraboia" me surpreendeu, ao tomá-la como um romance de Saramago.
Para quem está acostumado ao estilo insólito do português, causa estranheza a observância fiel à cartilha dos textos ordinários, com o uso regular de sinais de pontuação, a identificação nominal de praticamente todas as personagens e a evolução linear da narrativa. Tudo bem encaixadinho, como num edifício de apartamentos - local, por sinal, onde a história se desenvolve.
É, porém, um dos primeiros romances do autor. E, nesse sentido, não dá para se fazer uma leitura descontextualizada e anacrônica (apesar da atemporalidade que, como esta, marca as grandes obras). Vejo, no romance, um Saramago incipiente, dando os primeiros passos na criação de sua (hoje, velha conhecida) identidade, tentando ouvir sua voz interior. Ainda assim, já é um escritor maduro, que se utiliza virtuosamente. Um pouco experimentado em alguns de seus temas, percebi sinais (embora ainda tímidos, é verdade) de sua conhecida análise cética e pessimista da realidade, como no desfecho do embate entre os amigos Silvestre e Abel (quem tem a palavra final quase sempre sai vencendo).
Esse prisma foi o que mais me interessou no livro. Eu o recomendaria a quem deseja conhecer um pouco do início da produção do autor, ou que não tenha se adaptado ao seu estilo, mas ainda assim deseja degustar pílulas de sua visão sobre o mundo. Algumas construções de efeito, regaladas no texto (ainda estamos falando de um Saramago, afinal), devem colaborar na satisfação desse interesse.
Mas, para quem esperava um pouco mais, como os abundantes fluxos de consciência, em um matiz sarcástico que tanta polêmica já causou, ao enfrentar tabus em suas inovadoras produções subsequentes, o romance deixa razoavelmente a desejar.
"Há palavras que se retraem, que se recusam - porque significam de mais para os nossos ouvidos cansados de palavras". Entendo, nem sempre o deslumbramento é possível, com as palavras. Mas é que eu me acostumei mal com você, meu caro!
Longe de ser ruim, "Claraboia" é "apenas" um livro muito bom. Uma "claraboia", no universo escuro de Saramago.