Marc 01/06/2012
O perigo das boas intenções
Seria justo ter mais a escrever sobre esse livro do que farei. Meu primeiro contato com Marshall Sahlins, e não sei dizer o motivo porque nunca li sequer um texto seu na faculdade. Esses silêncios muitas vezes valem mais do que qualquer crítica que se queira fazer — e justamente por isso considero importante uma resenha.
Basicamente o curtíssimo texto é uma resposta a Obeysekere, antropólogo nascido no Sri Lanka e que fez duras críticas a Sahlins o acusando de reproduzir o imperialismo e o eurocentrismo “por outros meios”, ou seja, em sua teoria dos nativos do Hawai. Em torno da famosa morte do capitão Cook no século XVIII, Sahlins afirma que por uma infeliz série de coincidências o famoso navegador inglês acabou sendo confundido com uma divindade local (fato que terminaria com sua morte).
Sahlins explica que o capitão Cook acabou inconscientemente reproduzindo comportamentos esperados como típicos do deus Lono: circundou a ilha exatamente no mesmo período que o espírito o faria (e no mesmo sentido), desembarcou e, já em terra, cumpriu o protocolo do deus. Na verdade, como acontece com muitos livros de antropologia a leitura é muito gostosa nesse ponto, divertida mesmo porque mal dá para acreditar que tantos eventos poderiam encaixar e “comprovar” essa identificação. Uma comédia de erros se poderia dizer. Mas depois de cumprido seu período sobre a terra, Lono-Cook retorna ao além. Mais uma vez o infeliz acaso contribui para seu trágico fim: um dano no navio faz com que retorne e as mesmas pessoas que lhe rendiam homenagens agora são agressivas e violentas e roubam os navios ao invés de dar presentes como antes. Em uma busca o capitão termina cercado e é violentamente assassinado, seu corpo, de acordo com os preceitos dos nativos, é dividido em partes e distribuído.
Típico evento da difícil relação entre mundos diferentes que não conseguem se entender muito bem, o caso de Cook ainda suscita discussões acaloradas sobre imperialismo. Obeyesekere afirma, erroneamente segundo Sahlins, que os nativos jamais poderiam confundir um europeu branco com uma divindade local. Que apenas depois de sua morte é que recebeu um status divino, mas de chefe, jamais de um deus. E toma por base que o pensamento selvagem é extremamente ancorado no empirismo para se deixar cair nesse tipo de engano.
Mas, e esse é sem dúvida o ponto mais relevante do livro, Sahlins mostra que esse empirismo não vai desembocar necessariamente em um saber do tipo que conhecemos, nós ocidentais. Para os selvagens, pode haver uma relação evidente entre um morcego e uma rã, por exemplo (o que para nós soa até mesmo ridículo). E a partir daí, toda uma série de associações insuspeitadas por nós. Apenas uma outra maneira de ver o mundo e compreende-lo, não se trata de infantilismo. Lembrando a célebre lição de Levi-Strauss sobre o pensamento selvagem: não existe pensamento pré-lógico, os selvagens não são idiotas ou infantis diante do europeu. Mas sua própria maneira empírica de ver o mundo poderia fazer com que chegassem à conclusão de que Cook era Lono porque houve, de acordo com essa lógica, uma série de correspondências entre os dois. E, de acordo com essas mesmas correspondências, a volta de Cook não poderia ser tolerada, era o período em que o deus havia partido depois de ser agradado, recolhido seus presentes e oferendas. Sua volta significava um desafio aos líderes do povo, quase uma declaração de guerra. Eis o motivo que fez o capitão inglês ser morto.
Fundamental destacar ainda que ao descobrir um pensamento lógico-empírico nos nativos, Obeyesekere termina retirando completamente sua autonomia de pensamento, identificando-os aos europeus, como se a racionalidade ocidental fosse universal. Ou seja, ele mesmo ao tentar uma antropologia política, de resposta ao eurocentrismo, não observa que nada mais faz do que universalizar seus pressupostos e literalmente massacrar outros modos de pensamento. Os selvagens são calados, suas declarações, quando corroboram a divindade de Cook, são rotuladas como deformadas pelos pesquisadores europeus. E o mesmo porta-voz dos excluídos acaba justamente ajudando a silenciar os que representa.