Lista de Livros 16/11/2021
Lista de Livros: História da Vida Privada, Vol. 2, de Philippe Ariès e Georges Duby (org.)
Parte I:
“A sociedade dita feudal reconhece a virtualidade de tais relações entre amigos carnais, em todas as linhas, e frequentemente as atualiza. O belo casamento de Guillaume de Grandmesnil resulta “em grande honra para sua parentela”. O enforcamento, em terra de Nesle, de um cavaleiro-salteador envergonha seus primos: embora estranhos a esses delitos e pouco sensíveis a seu suplício, deles se queixam, mas em vão, a são Luís. Essas solidariedades amplas, contrariamente ao que imagina, com muitos outros, Marc Bloch, não entravam de maneira nenhuma o indivíduo. Dão-lhe, ao contrário, a ocasião de safar-se de embaraços: de extorquir contradoações aos estabelecimentos religiosos, de se convidar como parasita na casa dos primos afastados e de ir-se “para a guerra” com as alegrias do esporte e a esperança do saque. Elas são a garantia da liberdade do nobre, o critério de sua classificação, o trampolim de sua carreira: constituem o sucesso de sua vida pública.”
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Parte II:
“Proximidade, promiscuidade, por vezes multidão — na época feudal, o espaço, com efeito, jamais estava previsto, no interior das grandes moradas, para a solidão individual, senão no breve instante do trespasse, da grande passagem para o outro mundo. Quando as pessoas se arriscavam fora da clausura doméstica, era ainda em grupo. Todas as viagens eram feitas pelo menos em dupla, e se os companheiros não eram parentes, ligavam-se pelos ritos da fraternidade, constituindo, pela duração do deslocamento, uma família artificial. Desde que, por volta dos sete anos, considerados desde então como sexuados, os meninos da aristocracia saíam do universo das mulheres, eram lançados na aventura, mas permaneciam, e por toda a sua vida, no sentido mais forte do termo, englobados — se estavam destinados a servir a Deus, reunidos em uma escola, sob a condução de um mestre; senão, reunidos em uma equipe de estrutura semelhante, imitando os gestos de um patrono, seu novo pai, acompanhando-o quando deixava sua casa para defender seu direito pelas armas, pela palavra, ou para perseguir a caça na floresta. Terminado o aprendizado, os novos cavaleiros recebiam suas armas em grupo ainda, em enxame organizado como uma família, já que geralmente o filho do senhor era sagrado cavaleiro em companhia dos filhos dos vassalos. Eles não se deixavam mais, associados na glória ou na vergonha, respondendo uns pelos outros, oferecendo-se como reféns uns pelos outros. Seu bando, franqueado por uma criadagem e frequentemente por clérigos para as orações, corria de um torneio ao outro, de uma querela, de uma escaramuça à outra, indissociável, arvorando os sinais de sua coesão, cores ou um grito de reunião, o devotamento de todos esses camaradas a envolver o corpo de seu chefe em uma vestimenta indispensável de familiaridade doméstica: uma família itinerante. Assim, na sociedade feudal, o espaço privado aparece, na realidade, desdobrado, constituído de duas áreas distintas: uma fixa, em torno do lar, murada; a outra, deslocando-se no espaço público, não menos coerente, apresentando em seu seio as mesmas hierarquias, reunida pelos mesmos procedimentos de controle. No interior dessa célula móvel, a paz, a ordem encontravam-se mantidas da mesma maneira, por um poder de mesma natureza, cuja missão era organizar a defesa contra as agressões do poder público e que para isso erguia para o exterior um muro invisível tão sólido quanto a cerca da casa. Esse poder encerrava, retinha em seu interior os indivíduos, submetia-os à disciplina comum. Ele era coercitivo. E se vida privada significa segredo, esse segredo, necessariamente partilhado por todos os membros da família ampla, era frágil, logo descoberto; se vida privada significa independência, também essa independência era coletiva. ”
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Parte III:
“Se existe uma evolução na descoberta do indivíduo no final da Idade Média, ela se deve aos procedimentos de análise do real, aos instrumentos e ao vocabulário: a prática da dissecação, o hábito da frequente confissão, o uso da correspondência privada, a difusão do espelho, a técnica da pintura a óleo. Mas a multiplicação dos pontos de vista, o virtuosismo na imitação, a decomposição dos mecanismos do corpo não bastam para compreender o indivíduo em seu privado, assim como cubos de vidro colorido não bastam para formar um mosaico.
Para além da descrição realista, de um rosto ou de uma cena de interior, a grande pintura flamenga do século XV fascina porque se inspira em um pensamento, em uma visão simbólica. Diante da superfície lisa do quadro, cabe ao olhar do espectador redescobrir a chave, recompor o indivíduo e traduzir-lhe o segredo.”
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Parte IV:
“Mas tempos novos se preparam, desde o século XIV, com a afirmação de si de indivíduos preocupados em perpetuar sua imagem e sua memória neste mundo. Um grande movimento oriundo das sociedades urbanas do Ocidente fez recuar sem trégua os limites do mundo conhecido e os pilares do Céu, criando em torno da figura humana um espaço geométrico e insensível, abandonando aos humildes o valor das lágrimas, da credulidade e do assombro.
Lancemos um último olhar a esses objetos bem materiais, documentos e representações, cartas e crônicas, imagens humildes ou sublimes, livros de horas folheados, registros em tabelião interrompidos pela morte, restos de vestuário, pegadas frágeis e incertas deixadas sem comentários. Nenhuma leitura, nenhuma conclusão daí sai irrefutável e definitiva, porque a busca dos vestígios do íntimo está longe de ter terminado.”
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