Claudia 19/08/2009
FLICTS: CORAÇÃO DA COR
Quando posso falar, escrever sobre FLICTS é como se eu estivesse revivendo momentos de descobertas. Em 2005 escolhí o livro Flicts de Ziraldo como objeto da minha pesquisa de mestrado. Farei breve comentário sobre o livro e para quem for apaixonado pela obra, poderá acessar a dissertação na íntegra no site da Universidade Estadual Paulista-Unesp – Instituto de Artes, biblioteca, "FLICTS, LIVRO DE ARTISTA", 2007- (em pdf).
FLICTS – “O coração da cor”
Sem o uso de configuração naturalista, Ziraldo narra os problemas de uma cor deslocada do espectro do nosso imaginário. Flicts é uma cor que não está na caixa de lápis de cor, não está nas bandeiras dos países e não está no arco-íris. Flicts, apresenta um projeto gráfico original e modifica-se nas reedições ao longo do tempo, como a palavra e a imagem constroem a significação da obra, e sobre a abstração das formas naturais e sua geometrização, resultando uma simplificação num nível profundo de caracterização do mundo não figurativo, mas figural. Seu primeiro exemplar foi lançado em 1969, pela editora Expressão e Cultura, Rio de Janeiro.
A razão mais significadora que sustentou minha pesquisa, foi o desejo de exploração da capacidade humana que nos faz surpreender sempre e que renova os modos de ver, pensar, ler e expressar, para ressignificar um assunto, uma questão, um autor, uma obra, um objeto, enfim.
Ao escolher uma obra literária de Ziraldo como objeto de estudo, sabía que ela se apresentava com um gama considerável de possibilidades intrerpretativas, porém me apoiei num ponto básico que auxiliou na delimitação e a exploração do tema: o lugar inaugural ocupado pela obra do autor na história da literatura infantil e juvenil brasileira, em decorrência da multiface das linguagens e da concepção do objeto-novo. Entretando ampliei as interpretações, priorizando a leitura e análise da concepção artística da obra, suas modificações a cada edição e editora, bem como a leitura perceptual por crianças com oito anos de idade e suas interpretações.
O sentido de busca da identidade, que constatamos na trajetória da personagem Flicts, prima pela vitória de forças libertárias, que, em jogo com forças opostas, exercem tensões de proveito quanto à crítica, à ficção e à linguagem poética, tão explorada por Ziraldo.
A compreensão do literário contemplando o texto verbal e visual, no qual o sentido é gerado pela inter-relação entre as narrativas, sob as quais se constrói as obras "ziraldianas", faz surgir, amadurecer e crescer a produção editorial no Brasil, onde não são poucos os livros que merecem a qualificação de obras-primas.
A composição nova, contemporânea e para muitos tida como complexa que vemos em Flicts faz parte de um universo privilegiado, considerando a especificidade do livro infantil, que pode ser definido pela interposição de códigos, produtora da ação de representações simbólicas e muitas vezes complementar no processo da interação das múltiplas linguagens.
Com relação as duas reedições de Flicts (da Editora Primor/1976 e algumas da Editora Melhoramentos a partir de 1984, com exceção da edição comemorativa), comparadas à original, de 1969, Editora Expressão e Cultura, me deparei com modificações severas, algumas afetando aspectos gráficos-visuais e por sua vez a narrativa simbólica que Ziraldo concebeu em seu projeto gráfico inicial; lamento que medidas de economia adotadas pels editoras tenham alterado a concepção estética original da obra.
Reconhecendo que o diferencial inovador representado por Ziraldo na Arte do seu país, incluindo a de fazer livros, levando em conta a criação de Flicts que foi considerado um livro único, um livro-objeto, um livro de artista pelo seu valor estético, e obras que surgiram a partir de Flicts, garante-lhes status inaugural e uma acolhida bastante abrangente, nacional e internacionalmente, onde sua literatura e sua habilidade plástica seja conhecida pela originalidade do seu modo de escrever-desenhar-fazer livros, anunciando e guardando lugar na produção editorial brasileira, e principalmente, exercendo a liberdade em arte, trilhando o seu próprio caminho, insurgindo , pela criatividade, contra formalidades e convenções.
E para encerrar, algumas palavras de Carlos Drummond de Andrade sobre Flicts.
FLICTS:O CORAÇAO DA COR
“O mundo não é uma coleção de objetos naturais com suas formas respectivas, testemunhadas pela evidência ou pela ciência, o mundo é cor.
A vida não é uma série de funções da substância organizada, desde a mais humilde até a de maior requinte, a vida são cores.
Tudo é cor. O que existe, existe na cor e pela cor. A cor ama, brinca, exalta, repele, dá sentido e expressão ao sítio ou à aparência onde ela pousa.
Cores são seres individualizados e super-poderosos, que se servem de nosso veículo óptico para proclamar sua verdade.
Nossas verdadinhas concretas empalidecem ao sol múltiplo que elas concentram.
Aprendo isso, tão tarde! Com Ziraldo. Ou mais propriamente com Flicts, criação de Ziraldo, que se torna independente do criador, e vive e vibra por si.
Que é Flicts? Não digo, não quero dizer.
Cada um que trave contato pessoal com Flicts, e sinta o que eu sinto ao conhecê-la um deslumbramento, um pasmo radiante, a felicidade de renascer diante do espetáculo das coisas em estado puro.
Flicts faz a gente voltar ao ponto de partida, que, paradoxalmente, é ponto de chegada. No princípio era cor, e no fim será cor, alegria da percepção. Ou nem haverá fim, se concebermos a cor em si, flutuando no possível, desinteressada de pouso e tempo.
Flicts já flutua no bôjo desta idéia. Mais um passo, e não precisará de ponto de referência, ela que rodou por toda a parte para afirmar-se, e acabou se encontrando… onde, não digo, não quero dizer. Você é que tem que chegar lá para vê-la. O conto contado por Ziraldo só merece um adjetivo, infelizmente desmoralizado: maravilhoso. Não há outro, e sinto a pobreza do meu cartuchame verbal, para definir Flicts: não carece de definição. É.
Mestre do traço desmitificador ou generoso (Supermãe, Jeremias), Ziraldo abriu mão de suas artimanhas todas para revelar Flicts com absoluta economia de meios, ou, antes, sem meio algum. E dá-nos a festa da cor como realidade profunda, e não mera impressão da luz no olho. Sua revelação é fulgurante. Faz explodir a carga emocional e mental que as cores trazem consigo.
Disse que me faltam palavras: entretanto, o próprio Ziraldo, monstro inventor de Caratinga, soube encontrá-las, compondo com elas não uma explicação de Flicts, mas um guia lacônico de viagem, para acompanharmos o giro ancoso de Flicts pelo universo. Este guia saiu um poema exato. Do resto, que é Flicts senão poesia formulada de outra maneira por Ziraldo? E o consórcio das duas poesias forma uma terceira, dom maior deste livro.
Flicts é a iluminação – afinal, brotou a palavra – mais fascinante de um achado: a cor, muito além de fenômeno visual, é estado de ser, e é a própria imagem. Desprende-se da faculdade de simbolizar, e revela-se aquilo em torno do qual os símbolos circulam, voejam, volitam, esvoaçam – fly, flit, fling – no desejo de encarnar-se. Mas para que símbolos se captamos o coração da cor? Ziraldo realizou a façanha em seu livro.”
ANDRADE, Carlos Drummond de. In: “Flicts: o coração da cor”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 22 de agosto de 1969.
Grande abraço cor de Flicts!
Claudia Cascarelli