Alê | @alexandrejjr 08/02/2022
A arte do homem-conto
Extraordinário. Fantástico. Inclassificável. Incomparável. Único. As palavras não bastam para expressar a genialidade de Sérgio Sant'Anna. Elas não são o bastante. São apenas... palavras. E aqui, neste espaço limitante, vou usá-las da maneira mais honesta que eu conseguir para tentar explicar o que é a experiência de ler um dos autores mais geniais que já conheci.
Ler Sérgio Sant’Anna é flertar com o prazer. É flertar com o obsceno e o obscuro, com o erótico e o filosófico. Às vezes é flertar com tudo isso junto em único texto, seja ele composto de duas ou de trinta páginas. Mas não se engane: a literatura de Sérgio não tem espaço para o pornográfico e muito menos para a vulgaridade, mas nem por isso deixa de questionar os limites do que é socialmente aceitável.
Em “50 contos e 3 novelas”, que integra a Coleção Listrada da Cia. das Letras, uma das iniciativas editoriais mais cobiçadas por este leitor, um mundo inteiro de possibilidades se abre. É como se a ficção fosse indissociável da realidade e vice-versa. E é. Mas essa indistinção, tão difícil de realizar estética e tecnicamente, é apresentada em variadas situações nos contos de Sérgio. Vejamos abaixo.
A magia subversiva da imaginação está presente, por exemplo, nas tragédias shakespearianas sobre futebol em “No último minuto” e “Na boca do túnel”; no banal cotidiano de um homem que sobe o morro enquanto volta para casa no divertido “Sombras”; nos extraordinariamente atuais “Marieta e Ferdinando” e “Um erro de cálculo”, contos que discutem sexualidade, gênero e identidade; na arte de narrar o absurdo em “O dia em que não matei Bertrand” e “Dois cadáveres para uma loura”; no intencionalmente político e experimental “Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer)”; na habilidade de expandir uma mesma narrativa em “Cenários” e no olhar extraordinário sobre o ordinário em “Lusco-fusco”; no paralelismo kafkiano (por razões óbvias) de “O Despertar de Gregório Barata”; no antológico e indescritível “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”; na violência que raspa o limite do insuportável na novela “O monstro” e em “Um conto nefando?”; na reflexão metalinguística presente em “Invocações”, “Conto (não conto)”, “Um conto abstrato”, “Um conto obscuro” e “Saindo do espaço do conto”; nos densamente psicológicos e extremamente reflexivos “O recorde”, “A aula” e “Um discurso sobre o método”; na habilidade de dialogar com outras artes em “A figurante”; e nos machadianos “Estranhos”, “Formigas de apartamento”, “Os desígnios secretos”, “O duelo” e “O voo da madrugada”. Eu poderia falar dos contos restantes, até de um ou outro conto que gostei menos, mas em nada acrescentaria a este texto. Afinal, como vocês podem perceber, a obra de Sérgio é monumental.
Esta antologia de contos do Sérgio Sant’Anna é, portanto, ouro puro dentro da literatura brasileira (talvez mundial). A seleção das narrativas breves deste livro mostra o melhor da produção de um autor que não deve em nada na arte do conto a compatriotas como Machado de Assis, Rubem Fonseca, Clarice Lispector ou Lygia Fagundes Telles e, por que não dizer, aos incontornáveis do gênero, como Alice Munro, Anton Tchekhov, Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant, Jorge Luis Borges e Julio Cortázar.
Sérgio Sant’Anna, que foi uma das milhares de vítimas da covid-19 e nos deixou em 2020 em plena atividade, continuará sobrevivendo - como no título de seu primeiro livro, “O sobrevivente" - através da sua obra, pois só existe uma maneira de um escritor permanecer intocável diante do tempo: através da sua qualidade. E qualidade os contos de Sérgio Sant'Anna têm de sobra.