Diego Rodrigues 14/04/2022
"24 anos de verve musical, em troca da sua alma e da capacidade de amar"
Em 1938, o escritor alemão Thomas Mann, como muitos de sua geração perseguido e tendo suas obras atiradas à fogueira nazista, refugiou-se nos EUA. Voz ativa contra a ascensão de Hitler e defensor da "uma outra Alemanha", percorreu terras americanas lendo sua obra, dando palestras e auxiliando refugiados judeus. Em contato com nomes como Schoenberg, Stravisnky, Huxley, Chaplin e Einstein, o autor se tornou o centro das atenções. Visto como a personificação da cultura alemã, era frequentemente direcionada a ele a pertinente pergunta: "como a erudita Alemanha mergulhou em tamanha histeria?" E foi tentando responder a essa questão, e investigando qual seria o papel fundamental da arte, que "Doutor Fausto" começou a tomar forma.
Publicado originalmente em 1947, o último romance de Thomas Mann começou a ser escrito em 1943, no calor da Segunda Guerra Mundial. Para concebê-lo, o autor retomou uma ideia que já havia passado por sua cabeça: escrever um romance fáustico. A obra narra a biografia do compositor fictício Adrian Leverkühn, um gênio de personalidade fria e solitária que incendeia a cena artística com sua "nova música". Mas por trás da figura do gênio se esconde um segredo nefasto. Em uma analogia à ascensão do Terceiro Reich e à renúncia do povo alemão a sua humanidade, o compositor faz um pacto com o diabo: 24 anos de virtuose musical em troca de sua alma e da capacidade de amar.
O pacto em si demora para acontecer e o diálogo entre o compositor e o diabo é uma das melhores coisas que a literatura pode nos proporcionar, mas antes disso a obra já nos cativa pelo enigma construído em torno de Leverkühn, um jovem dado ao isolamento e com um gostinho especial pelo místico, que vamos acompanhar desde a mais tenra infância. Narrada sob a perspectiva de Serenus, um amigo de infância, a biografia investiga todos os pormenores da vida do compositor que, assim como a Alemanha da década de 30, almejava fazer parte de "algo grandioso". Ao longo da narrativa, Mann traça diversos paralelos entre o percurso do músico e da Alemanha nazista. Humanista nato, seus medos e suas incertezas sobre os desdobramentos da Segunda Guerra ficam evidentes e chegam ao ápice quando e o autor chega a conclusão de que a derrota na guerra talvez seja a única forma de salvar a Alemanha.
Mann, quem já leu sabe, é um escritor extremamente minucioso. Cada novo personagem que nos é apresentado, tem traçado seu perfil físico e psicológico, sua filosofia de vida e seu histórico familiar. Cada cenário tem sua riqueza de detalhes desbravada, com sua história, sua cultura e sua arquitetura. O autor também mergulha em profundas digressões sobre os mais variados temas: literatura, filosofia, teologia, etc. A música, é claro, desempenha um papel fundamental na obra e Mann, que teve a ajuda de compositores profissionais, explora com riqueza esse mundo mágico. Acredito até que certas passagens possam soar um pouco enfadonhas para os não musicados. Teorias, notas, escalas, intervalos, tempo, partituras, são alguns dos elementos que irão permear toda a leitura. Cabe até um capítulo inteirinho dedicado à obra de Beethoven. Logo, essa é uma leitura que exige paciência. Confesso que senti um pouco de dificuldade em alguns momentos e talvez não estivesse em meu melhor momento para encarar uma obra dessa densidade. Embora tenha gostado do livro, principalmente da metade adiante, sinto que não absorvi tudo que ele tinha a oferecer. Penso em fazer uma releitura futuramente, após ler outras de suas obras e estiver mais familiarizado com a escrita do autor (até então só havia lido "A Montanha Mágica").
Apesar de todos os percalços, a obra acabou por me cativar. Reunindo alguns dos elementos que mais gosto na literatura: contexto histórico e pacto fáustico; foi uma leitura repleta de reflexões, principalmente no que diz respeito a arte e seu papel. O posfácio de Jorge de Almeida, presente nessa edição, também foi bem enriquecedor, contextualizando toda a obra. Foi uma leitura laboriosa, mas ao mesmo tempo recompensadora. Se eu indico? Talvez não para os leitores de primeira viagem do autor. E levando em conta sua densidade, é mais aconselhável se programar para embarcar nessa leitura em um momento de maior tranquilidade.
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