Ana Sá 29/11/2023
Mulheres moçambicanas, no plural
"Niketche - Uma história de poligamia" (2002), da moçambicana Paulina Chiziane, narra a história de Rami, uma mulher do Sul de Moçambique que descobre nas injustificadas ausências do marido Tony a existência de outras quatro "esposas" por ele mantidas. E aqui faço uso das aspas pois a condição dessas mulheres diz muito sobre a riqueza do panorama histórico-cultural que fundamenta o romance:
Se interpretadas à luz da monogamia de viés cristão trazida-imposta pela colonização portuguesa ao Sul do país, tais mulheres poderiam ser chamadas de "amantes", entretanto, sob o prisma da poligamia trazida-imposta pela ocupação árabe ao Norte, elas seriam também suas "esposas". Em síntese, nas palavras da própria Rami, Tony, sendo um homem do Sul e oficialmente comprometido com um relacionamento monogâmico, "faz imitação grotesca de um sistema que mal domina".
A ideia de uma "imitação grotesca da poligamia" anuncia o ponto forte do livro: fugindo de dicotomias simplificadas, a obra não faz uma distinção entre "bom" e "ruim" ao contrapor monogamia e poligamia. Ao contrário, é "grotesca" a postura de Tony pois, conforme é mostrado no livro, tradicionalmente poligamia não é bagunça, mas um modelo/arranjo familiar com regras próprias, no qual, por exemplos, não se admite a ideia de filhos ilegítimos (e portanto desamparados), havendo, inclusive, margem para uma (pequena) lógica matriarcal.
Mas, Ana, então esse romance celebra a poligamia?
Como eu disse, não necessariamente (ou bem pelo contrário?).
O livro de Paulina tem a força e a complexidade que tem justamente pelo modo como contradições e ambiguidades são tratadas ao longo de toda a narrativa, o que reflete/desenha retratados históricos próprios dos impasses entre tradição e modernidade/pós-colonialidade em Moçambique. A autora é genial ao lidar com esses embates e trânsitos histórico-culturais! E é por isso que ao mesmo tempo em que passam a se valer da poligamia e de outras tradições em favor próprio, as personagens femininas levantam questionamentos como: "Poligamia é destino de homem e castidade é destino de mulher" ou "Em matéria de presença, um marido polígamo é tal e qual um amante".
Por falar então nas personagens femininas de Paulina, eu considero que "Niketche" nos convida a descolonizar a nossa visão essencialista e universalista de “mulher africana” e de "patriarcado". Digo isso não só devido ao fato de a própria escritora se negar a aceitar o rótulo de “feminista” tal qual ele é definido pelo eurocentrismo, mas porque aqui somos brilhantemente apresentadas a "mulheres moçambicanas" em sua diversidade de vivências e de perspectivas. Quem diz que esse é um romance sobre “a” mulher africana e contra "o" patriarcado não entendeu muita coisa! A relação que Rami passa a ter com as demais esposas-amantes de Tony, a maior parte delas nascidas no Norte, e não no Sul, traz à narrativa feminismos plurais decorrentes de um incessante exercício de alteridade.
Não por acaso "Niketche", em Moçambique, é justamente uma dança coletiva e circular, servindo, pois, de alegoria para as aproximações e os distanciamentos que marcam o encontro das figuras femininas do romance. São mulheres que vão se descobrindo melhor a partir do que veem e do que não veem de si umas nas outras. O continente africano é plural, Moçambique é plural, e essas mulheres só existem no plural. Como bem disse Grada Kilomba em "Memórias da Plantação": "Aplicar a noção clássica de patriarcado a diferentes situações coloniais é insatisfatório. (...) O modelo do patriarcado absoluto foi questionado por feministas negras".
Eu poderia escrever pelo menos mais duas resenhas em continuação a esta aqui. Para além do que já descrevi, eu posso mencionar, por exemplo, que o humor e a ironia de Paulina são um deleite! Os temas complexos e sensíveis que são abordados do começo ao fim não impedem a autora de nos fazer gargalhar em muitos passagens! Impressiona que uma obra que toca tantos tipos de violência contra a mulher consiga ter momentos de leveza e graça, muito a partir da transgressão e da usurpação das tradições patriarcais sagazmente realizadas pelas personagens centrais. Aliás, aqui as mulheres não se resumem à condição de vítimas e eu andava sentindo falta disso na literatura atual! Elas também são agentes, e pra garantir a nossa gargalhada, às vezes elas são verdadeiras agentes do caos!
Eu sei que algumas leitoras dizem não ter gostado tanto assim de "Niketche" por causa da escrita bastante lírica-doce ou então por causa da circularidade/repetições narrativas. Entendo que gosto é gosto, mas pra mim esse tom ora poético demais, ora caótico demais reflete com coerência o interior igualmente doce-amargo da nossa protagonista Rami! Digo mais: como não se apegar a uma personagem que nos traz divagações do tipo: "Para as mulheres o eterno conselho é: segura, fecha, cobre, esconde. Para os homens é: larga, voa, abre, mostra". /// "Estou desesperadamente a pedir socorro e respondem-me com histórias de macho".
Vale lembrar que em 2021 Paulina Chiziane recebeu o Prêmio Camões e eu acho é pouco! Paulina não se aceita nem como "feminista" nem como "romancista" e me parece que o faz devido à insuficiência de categorias/rótulos eurocêntricos para definir sua escrita. De fato, nos faltam palavras para definir Paulina Chiziane e eu espero que ela seja mais e mais lida, até que nos brotem adjetivos que façam jus ao que ela nos entrega em obras como "Niketche". A literatura moçambicana não se resume a Mia Couto e que bom que começamos a nos dar conta disso!
Obs.: para falar em escritoras moçambicanas, no plural, eu não poderia deixar de indicar o belo livro "Sangue negro" (ed. Kapulana), da poeta Noémia de Sousa, que é tão reverenciada pela Paulina em suas entrevistas.