Fabio Shiva 08/01/2021
a “cena da revelação”
E lá vamos nós, novamente lendo e relendo os deliciosos mistérios de Agatha Christie. Dessa vez, até por conta do clima teatral que permeia toda a história, fiquei refletindo sobre a “cena da revelação” do romance policial, quando o detetive (no caso, o inigualável Hercule Poirot) reúne os suspeitos ao final do livro para contar minuciosamente como chegou à elucidação do crime. Inegavelmente essa cena é o clímax da história policial clássica, do tipo “whodunit” (“quem matou?”), quando o leitor-jogador descobre até que ponto teve sucesso em descobrir o assassino, comparando suas hipóteses com a solução apresentada pelo detetive. Um dos fatores mais curiosos a respeito do romance policial é que quanto mais é ludibriado pelo autor, mais o leitor fica satisfeito! Geralmente, quando o leitor consegue desvendar o mistério antes da “cena da revelação”, o livro é considerado fraco.
E aí está um dos ingredientes do imenso e duradouro sucesso de Agatha Christie. Poucos autores conseguem engabelar tão bem o seu leitor! Agatha é muito matreira e sabe como ninguém burlar as regras do romance policial sem, contudo, jamais ser desleal com o leitor.
Voltando à “cena da revelação”, algo que me chamou a atenção dessa vez é o quanto algo assim dificilmente ocorreria na vida real. Por mais sangue frio que possua o assassino, é inverossímil esperar que fique docilmente ouvindo seus crimes serem expostos nos mínimos detalhes, sem tentar ao menos dar um soco na cara do detetive abelhudo! Pensando bem, a inverossimilhança da cena final combina perfeitamente com a inverossimilhança da maioria dos assassinatos que ocorrem nesse tipo de história e que mais parecem truques de prestidigitação, por envolverem tantos detalhes, despistes e complexos planejamentos. Por serem tão inverossímeis é que são tão deliciosos! Um bom romance policial clássico é mais um jogo que literatura propriamente.
Ainda assim, nada impede que elementos literários sejam saborosamente acrescidos ao jogo de detetive. Outros autores, como por exemplo P. D. James e Ruth Rendell, enriquecem suas tramas policiais com complexos dramas psicológicos. Mas Agatha também não perde a oportunidade de fazer algumas observações bem interessantes:
“Viajar para quê, afinal? A língua pode ser diferente, mas em todos os lugares a natureza humana é a mesma.”
“Ingleses costumam ser modestos quanto àquilo que sabem fazer bem e às vezes se orgulham de coisas que fazem mal; latinos, porém, sabem apreciar suas próprias capacidades. Se são inteligentes, não veem motivo algum para esconder o fato.”
“Como falei dias atrás, temos três tipos distintos de intelecto. Primeiro, o intelecto dramático do criador de peças teatrais, que visualiza o efeito realístico capaz de ser produzido por dispositivos mecânicos. O segundo tipo é o que reage com facilidade às manifestações dramáticas: o intelecto jovial e romântico. E o terceiro, meus amigos, é o intelecto prosaico: não enxerga mar azul nem mimosas floridas, mas o fundo artificial do cenário do palco.”
Especialmente interessante nessa “Tragédia em Três Atos” é uma personagem escritora, Srta. Wills, que bem poderia ser um alter ego de Agatha:
“A srta. Wills é dona de uma personalidade curiosa. É uma dessas pessoas completamente incapazes de causar uma impressão indelével no ambiente em que se encontra. Não é bonita, nem espirituosa, tampouco interessante, nem mesmo especialmente simpática. Ela não tem nada de especial. Mas é extremamente observadora e extremamente perspicaz. Ela se vinga do mundo com sua escrita. Tem a imensa arte de ser capaz de reproduzir uma personalidade no papel.”
Essa “vingança do escritor” é admiravelmente descrita nessa fala da própria Srta. Wills:
“Mas na minha experiência as pessoas nunca se reconhecem. – Deu um risinho. – Desde que, como o senhor acabou de dizer, o escritor seja realmente implacável.”
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