spoiler visualizarPaulo.Balbe 13/02/2024
Uma obra prima da literatura universal
É consenso que o romance “A Montanha Mágica” de Thomas Mann figura no rol das obras literárias mais importantes do século XX. Ouvi falar da obra por amigos e, tomado de curiosidade, decidi lê-la.
Muito já foi dito sobre a obra por figuras de renome na cena literária desde sua publicação no ano de 1924. Há registros e intercâmbio de ideias entre Thomas Mann e alguns escritores expoentes da literatura brasileira como, por exemplo, Érico Veríssimo (como Buddenbrook, o Tempo e o Vento narram uma história familiar), dentre outros.
A obra já foi estudada e classificada no escopo dos cursos de Letras e humanidades na seara acadêmica. Já foi dito, por exemplo, que o livro se enquadra no gênero do “romance de formação” e que nela o tempo adquire protagonismo, pois à medida que passa sua percepção pelos personagens da estória é alterada. Na altitude e no isolamento o tempo é percebido de modo diferente quando em comparação com os habitantes da “planície”.
Há muitos temas abordados pelo livro que, isoladamente, renderiam (e já renderam) bons artigos e ensaios. Portanto, o texto que segue é um relato de impressões sobre partes da narrativa que julguei interessantes.
Na narrativa o protagonista, Hans Castorp, é um jovem burguês órfão, com 24 anos de idade, recém formado pela escola politécnica e habilitado a exercer o trabalho de engenheiro naval. Sua jornada de Hamburgo a Davos, no final do mês de julho do ano 1907, ocorre em virtude da necessidade de visitar o primo, Joachim, que se encontrava no sanatório para o tratamento de uma tuberculose. Joachim é um aspirante a oficial (que outrora estudara jurisprudência por influência dos pais e opta pela carreira militar) e vê interrompidas as suas atividades militares devido ao estágio agudo da doença.
Tão logo Hans chega na estação de trem no vilarejo de Davos e expõe ao seu primo o período que pretende ficar, recebe a recomendação de que não se atenha tanto ao tempo, considerando que 3 semanas é uma período demasiado curto para uma estadia em Berghof. Passa a habitar o quarto de número 34 (sete, é um número presente na obra e tem sua simbologia própria).
O sanatório, dirigido pelo médico Behrens, caracteriza-se mais pelo luxo e pela conveniência proporcionada aos seus pacientes, originários de várias regiões da Europa e Rússia. Fica patente que os demorados períodos de tratamento em Berghof podem sugerir não apenas uma intenção sincera de parte de sua administração na cura completa dos doentes, mas o interesse financeiro de que lá continuem residindo por tempo indeterminado, a critério de seu diretor.
A proprietária do estabelecimento, uma sociedade de capital anônima cujos registros contábeis apontam uma ótima rentabilidade, regalando seus acionistas com polpudos dividendos. No sanatório também trabalha Krokowski, assistente de Behrens, que exerce a atividade de “dissecar almas”, ou seja, provavelmente um psiquiatra que deu início ao novo método psicanalítico do Dr. Freud.
Se podemos questionar os motivos pelos quais os tratamentos preceituados levam tanto tempo para a cura, fato é que por parte de muitos dos pacientes também há um interesse velado no prolongamento da estadia. O diagnóstico da moléstia, embora grave, propicia um período de afastamento da “planície” e das ocupações corriqueiras.
O narrador dá a entender que há muitas razões, nem todas de natureza médica, que motivam a permanência no sanatório. Daí o ponto defendido por um personagem, do qual a seguir falaremos, de que a doença ocasiona certo estado de volúpia em seus portadores, que se permitem certas liberalidades não aceitas na planície.
Durante o primeiro período de sua estadia o protagonista conhece Lodovico Setembrini, um maçom iluminista, humanista, liberal e progressista, neto de um carbonário italiano e filho de um literato de Pádua (irônica referência ao personagem é feita pela alegoria da poesia “A Satana” de Giusuè Carducci). Setembrini toma para si o papel de mentor do jovem Hans. Trajado de vestes dignas, porém usualmente repetidas e desgastadas, Lodovico evoca na lembrança em Hans de um “tocador de realejo”. Uma reminiscência romântica à sua simplicidade, atitude galanteadora e aos seus discursos de progresso, evolução social, liberdade, humanismo, de confiança na técnica e na moral.
A contraparte de Lodovico, seu nêmesis, Leo Naphta, que aparece bem mais adiante na narrativa, é um senhor de idade próxima à de Setembrini, judeu convertido ao cristianismo, elegante nas vestes, jesuíta, professor de línguas antigas. De natureza sóbria, abraça uma concepção de espiritualidade que apregoa a função do trabalho como libertadora do pecado (Labor omnia vincit?) e vê no corpo um estágio intermediário, abjeto, fadado à perdição. Naphta encarna o espírito gótico do medievo e desdenha do progresso das ciências naturais ante o absoluto, o metafísico, o inefável. Todavia, contempla na nova sociologia emergente, o marxismo, o provável caminho para que a humanidade alcance o estágio ideal, o paraíso, o fim da história. Admite a possibilidade de um autoritarismo em contraposição à liberdade, do coletivismo em oposição ao individualismo liberal burguês.
É no mínimo curiosa essa posição de Naphta como primevo “teólogo da libertação” antes da existência do Concílio Vaticano II (e da abertura semântica a seus postulados), mas contemporâneo à encíclica Rerum Novarum, que abriu flanco para a crítica aos excessos do capitalismo burguês. Pode denotar, em síntese, a natureza revolucionária de Naphta que já se rebelara contra os costumes de sua comunidade judaica e, mais uma vez, manifesta-se na insurgência contra os postulados da Igreja Católica, conferindo aos dogmas religiosos uma visão bastante peculiar.
De uma parte ou de outra, nos discursos proferidos e no embate dialético com o objetivo de cativar as almas dos dois primos (naturezas expostas às influências, filhos enfermiços da vida), Setembrini e Naphta admitem a utilização do recurso bélico revolucionário e a natureza política de suas ideias. Do lado liberal progressista, a guerra civilizadora, contrária à tirania monárquica, sobretudo a Prussiana (último resquício do Sacro Império Romano-Germânico, segundo Setembrini); de outro, o marxismo (não se sabe se o autor pretendeu fazer referência ao viés leninista ou trotskista) como estrutura ordenadora da sociedade, estágio no qual não haveria necessidade de liberdade, mas de obediência, renúncia, disciplina de ferro e, em síntese, a submissão do indivíduo. A ditadura do proletariado, a condição ideal e originária dos homens perante Deus, de plena e irrestrita igualdade, exercendo o trabalho para a subsistência e não para a exploração do capital visando o lucro ou a usura.
Naphta é uma figura enigmática e possui um complexo arcabouço psicológico. Como Hans, também é órfão, mas sua orfandade decorre de um episódio trágico (a morte de seu pai, crucificado à porta da casa onde residia a família, em decorrência do ódio e da intolerância religiosa). Daí porque, talvez, em suas falas não seja possível identificar a defesa de dogmas cristãos, mas um vínculo primordial entre homem e Deus, abolindo toda e qualquer diferença (e, quem sabe, nessas diferenças, a própria religião). Por outro lado, sua identificação como “jesuíta” na Alemanha do início do século XX, majoritariamente protestante, talvez seja tão escandalosa quanto à identidade “maçônica” de seu oponente, Setembrini. Ambos utilizam esses adjetivos (jesuíta, maçom) em tom pejorativo para desqualificar o seu oponente.
O autor coloca em oposição a pobreza de Setembrini, defensor de ideias humanistas liberais e burguesas, à opulência de Naphta, religioso mórbido e crítico ferrenho do capital. Um paradoxo que causa estranheza aos primos é riqueza da mobília de Naphta, nada obstante a singeleza da casa na qual loca o quarto onde habita e seus ideia de despego aos bens materiais. Daí uma desconfiança paira sobre seus discursos, embora lógicos em sua estrutura.
Durante a estadia em Berghof Hans mostra-se adaptado aos hábitos das alturas e passa a gozar da situação contemplativa que a altitude e o conforto lhe proporcionam, despido das obrigações que lhe imporiam uma atividade frenética na planície, em prol do progresso e do lucro. Desfruta do ócio e da filosofa, dedica-se aos estudos da medicina e da botânica. Utiliza o verbo “reinar” para essa atividade de investigação diletante, uma atitude aristocrática de estudo das artes liberais.
Hans bandona seus estudos técnicos de engenharia. Dedica-se a alguns empreendimentos de caridade, visitando pacientes moribundos do sanatório (mais por reverência à morte e à doença, na verdade). Nesse ínterim passa a nutrir interesse pela personagem Clawdia Chauchat (a enferma lânguida de olhos tártaros ou quirguizes), a quem inicialmente dedicava elevada disposição crítica, considerando seus hábitos não civilizados e postura negligente para os padrões germânicos. O desenlace amoroso ocorre após uma noite de carnaval (Noite de Walpurgis) na qual Hans parece ter tido êxito na proximidade com Clawdia.
Um traço curioso é a lembrança que Clawdia Chauchat evoca em Hans: a de um colega de ensino fundamental, Pribislav Hippe. A comparação ocorre em torno de fatos semelhantes: o empréstimo de um lápis (Pribislav) e o empréstimo de uma lapiseira (Clawdia). Aparentemente há uma dubiedade na sexualidade de Hans. Essa dubiedade, aliás, também se apresenta na obra “Morte em Veneza” de Thomas Mann. A ilustração da narrativa com personagens que exploram a sexualidade é representada não somente no próprio Hans, mas pela “princesa egípcia” que já se hospedara no sanatório.
A estadia de Hans se prolonga por 7 (sete) anos, período no qual Joachim, frustrado com a dificuldade na obtenção da alta médica, parte para as atividades militares na planície, abandonando o tratamento. Retorna, depois, muito doente, vindo a falecer.
Hans arrisca-se a um passeio durante o inverno, subindo a montanha, episódio que deflagra seu amadurecimento em uma epifania idílica, resultante de um estado de inconsciência ao enfrentar uma tempestade de neve: o sonho com a plácida praia, seus habitantes gentis, quando abruptamente se depara com uma cerimônia macabra dentro de um templo.
O próprio Hans passa a interpretar seu sonho (Freud) atribuindo à atitude polida e civilizada daquela população jovem, habitante da praia, o gesto de amabilidade recíproco em virtude do temor e do pavor da cena macabra que se desenrolava em seu seio. O amor é a força propulsora do trato humano cordial e é desencadeado pela repulsa da lembrança de uma cerimônia sangrenta.
Daí a possível simpatia de Hans com Setembrini, pois apesar de ironizar o papel pedagógico do “tocador de realejo” vê no italiano uma expressão de vida no seu discurso humanista elogioso à razão e ao progresso, ainda que contrário à religião (Setembrino, ao que tudo indica, filia-se à Maçonaria Francesa, de perfil ateu ou agnóstico). Naphta simboliza a morte, a deserção da vida, o sacrifício do corpo e a submissão da vontade, nada obstante o vínculo com o absoluto, com o transcendente. A dialética de Hans permite a síntese da dualidade humana, com um pendor favorável à piedade e à bondade em detrimento da misantropia e da volúpia tenebrosa da tirania de ideias que se arvoram como absolutas.
Essa possível síntese vem complementada pela figura de Mynheer Peeperkorn, um holandês que chega ao sanatório em companhia de Clawdia Chauchat, para a decepção de Hans. Mynheer, também doente, com 60 (sessenta) anos, portador de uma febre (malária?) é o retrato do homem prático, entregue aos prazeres da vida e ao gozo. Rico plantador de café, nascido em Java, não esconde sua preferência pela bebida, música e belas mulheres. Como enuncia o próprio autor, Mynheer não era talhado para confusões lógicas. E disse tudo. Sua liberalidade, sua fanfarronice e generosidade para com seus convivas contabilizava para si um séquito de seguidores de conveniência, que se alegravam com os prazeres proporcionados por aquele generoso anfitrião. Diante dele, Hans, Setembrini e Naphta ficam apagados, relegados ao um canto obscuro e considerados como uma racionalidade opressora. Mynheer, pode-se dizer, tem a alegria de viver (joie de vivre) e mostra pouco apreço pelos discursos racionais filosóficos ou políticos. É um homem prático e sentimental, mas não prático no sentido de um adepto ao progresso à razão iluminista. É prático porque lhe interessa a realidade e o gozo do presente. Não é contemplativo. É ativo.
Hans nutre uma especial admiração por Mynheer, embora seja seu rival no amor por Clawdia. Há um magnetismo em Mynheer, a autoridade, a masculinidade, a experiência de vida, que leva Hans a tentar aprender mais sobre aquela personalidade pela proximidade no convívio e nos diálogos. Essa aproximação não é, no início, bem compreendida por Clawdia, que se enciuma. Mynheer percebe o caso entre Hans e Clawdia desde o início mas, pela idade mais avançada e o estágio de debilidade física, interpreta a situação de uma forma diversa: convoca Hans a ser seu “irmão” e seu “filho”. Perdoa o fato. Da parte de Hans, aceita com felicidade essa condição e alia-se à Clawdia para auxiliar Mynheer. Com o suicídio de Mynheer (não se sabe com certeza se com ou sem o auxílio de Clawdia) ocorre uma nova separação. Hans, para Clawdia, ainda que fosse um “um burguesinho bonito, de boa família”, era um “valdevinos filosófico”, uma personalidade fraca que não estava à altura de suas necessidades e de seus caprichos.
Um novo período se inaugura, no qual Hans desperta o interesse pela música, com a chegada no sanatório de uma vitrola elétrica (muito mais evoluída do que o antigo gramofone). Uma nova distração. Um novo interesse. Torna-se aparente entre os habitantes do sanatório uma crescente indisposição e falta de tolerância. Os ânimos se inflamam por poucos motivos. Presencia-se uma briga entre dois habitantes, chegando às vias de fato. Setembrini e Naphta duelam. Naphta suicida-se no duelo.
Hans permanece no sanatório, já com hábitos displicentes, alheio aos hábitos e costumes de sua terra natal. Deixa-se tomar por completo na lassidão. Segue sem rumo até que o “trovão” da guerra ressoa. Naphta estava certo ao prever a chegada do caos. Hans vê-se desperto de seu sono letárgico e de sua lassidão, sendo chamado à guerra. Deve, finalmente, gostando ou não, tomar posição, decidir-se, agir. Parte para o front, com despedida carinhosa de Setembrini na estação de trem. Finalmente desce à planície, desta vez para testemunhar os horrores da guerra: os campos enlameados, as marchas sem fim, as explosões dos obuses destroçando corpos, a tempestade de aço dos projéteis. Enquanto luta no front, rumo à morte, Hans canta.
Há muitíssimas interpretações possíveis para esse fantástico romance. Talvez novas surjam com novas leituras e outras camadas de interpretação. O que fica claro é a grandiosidade do espírito criativo de Thomas Mann e sua argúcia em perceber o “espírito” de uma época que, embora já distante, reverbera no contemporâneo.