Paulo 01/04/2024
Boneca Russa
Uma boneca dentro de uma boneca. Um mundo dentro de outro mundo.
Até não seria por isso que o livro é recheado de personagens russos?
Logo no início, é descarregado para nós a seguinte linha de pensamento: que o homem é moldado pela época em que está vivendo e pela sociedade em que ele está inserido e que esta consequentemente está inserida nele também.
Tendo em vista isso, no decorrer do livro, Hans se lembra do momento em que conheceu aquele amigo do lápis, pelo qual tinha uma admiração sem saber a razão. Ele se recorda disso após ficar fascinado pela madame de dedos curtos, que lembra esse seu antigo amigo.
Por ele estar inserido na sociedade daquela época, ele poderia só se apaixonar por uma mulher? Pois, se apaixonar por ela, foi trazer aquele fascínio que ele sentiu pelo rapaz do lápis novamente. Dessa forma, era possível extravasar esse sentimento, direcionar para alguém, nas mesmas condições do outro que ele tinha gostado.
Inclusive, nas palestras do doutor palestrante, ele explica o quanto o amor vive escondido pelas amarras da sociedade e se aflora de formas diferentes, pois nunca é sufocado por completo.
Então, não que ele fosse homossexual, até mesmo porque esse pensamento nem poderia ser concebido nessa época e círculo social pertencente, pois essa palavra, essa classificação, não significa nada para ele. No entanto, é um sentimento sem nome, dado vazão por outra vertente, tendo se transformado em outra coisa, pois foi moldado pela época em que está inserido. É por isso que nem ele mesmo entende o motivo, o que significa aquele sentimento, aquele deslumbramento. Por não ter capacidade de identificar, por não saber que aquilo fosse possível de existência. E o livro mesmo termina expondo a sua simplicidade de pensamento, essa incapacidade de se entender.
Na primeira palestra, o doutor palestrante (novamente) explica que a origem das doenças vem do padecimento pelo amor. Tendo dado vazão a esse amor que estava guardado, Hans pôde se libertar, sem nem mesmo saber e começar a se tornar sadio. E essa teoria acaba se enfatizando quando Hans relata sobre a personagem cheia de chagas que fugiu com o amante e depois apareceu com todas as doenças possíveis.
Em outra parte, Hans fica desgostoso que sua temperatura não está tão alta e não entende o motivo de mesmo estando febril, não conseguir fazer parte do grupo dos russos. A doença serve como bilhete para entrar nessa sociedade "lá de cima". Ele recebe pontadas do senhor Settembrini (que homem insuportável, que discussões insuportáveis!!!) sobre como estava o processo de aclimatação dele, em vista que Hans não estava com eles a tanto tempo assim. Ou seja, não era participante do grupo social a tanto tempo. Era novato ainda. Se elevou (literalmente subindo a montanha) a muito pouco tempo. Essa sua ascensão social não foi, a princípio, bem aceita. Até o primo tinha vergonha do jeito espalhafatoso e afetado dele. Mostra como viver em sociedade requer um nível de loucura tremenda. Tem que ser doente (de alguma forma) para ser aceito. Que coisa mazelenta essa!
Existe uma sensação, igual de pandemia, na montanha também. Digo nessa parte sobre a reclusão e o distanciamento do cotidiano, que acaba nos transportando para outros interesses. Acha-se tempo para hobbies já esquecidos ou para conhecer novos. O interesse se aguça por mais sabedoria. Igual Hans adentrando a tantos diferentes assuntos e se dedicando nos estudos de biologia, medicina, botânica e astrologia.
Teve momentos que eu quis esganar esse Hans, que grande chato! Quer saber de tudo, conhecer tudo e o pouco de novidade que aprende, já quer jogar em cima de alguém e ficar falando sem parar. Os rótulos que o definem e que são de seu gosto, fica repetindo sem parar! "Paisano, amante da vida..." aaahhh um chato, isso sim! Mas um chato nesse fator em específico só, pois eu amei ele.
Um outro fato curioso, é quando ele se abriu para a dama que bate a porta num estrondo, em francês, e só assim, conseguiu expor tudo o que sentia. E em todo o momento, ficava enfatizando que era como se estivesse em um sonho. Eu, quando falo em outra língua, sinto que não sou eu também. Como posso explicar isso? Falo um palavrão que na minha língua materna, eu não falaria. Consigo me expressar talvez, sem vergonha. É como se eu pudesse ser outra pessoa, outra versão, estar em um sonho mesmo, só pelo ato de ter cambiado a língua.
Confesso que, como os personagens, eu também me perdi na passagem do tempo. Do primeiro dia (narrado em mais de 100 páginas), nos pegamos substituídos por fevereiro que vem depois de 7 meses já. Mal percebi isso e fiquei o livro inteiro curiosíssimo para saber o total que Hans ficou nas paragens. O livro narra sobre o tempo que constitui uma época e não somente uma época abrangente da humanidade, mas uma época da vida pessoal do nosso personagem herói. Fica, realmente, a sensação de uma vida narrada.
Essa falta de noção do tempo que o Hans passa por lá, é nos dada por pinceladas de momentos dele naquele lugar. Dito isso, olhando para minha vida, é a mesma coisa. Me lembro de determinados momentos, atitudes, falas e isso me situa na posição da vida de que quero me recordar. Ou seja, não lembro dela 100% mas sim por fatos que aconteceram nela. Estou dando voltas e voltas na explicação igual eles já, mas o que eu quis dizer é que o livro traz essa sensação de vida "vida" mesmo. E de como foi escrever sobre uma, cruamente, transpondo essa sensação real, para o leitor.
Do momento que eu terminei esse livro, me dei de cara com o começo da mesma situação de Hans.
O mundo de hoje não se encontra exatamente onde deixamos nosso herói? O grande tédio já não se alastrou mais uma vez pelas entranhas do homem?
Se encontramos um grande amor, ele acaba não sendo do jeito que idealizamos e por conseguinte, se tornando insuficiente. Tudo que fazemos é trabalhar e viver nossa vida rotineiramente, tentando nesse interim, praticar o correto. Chega um momento que parece que você está se afogando nessa rotininha. Tudo igual, nada superior as nossas expectativas.
O grande trovão, o despertar desse torpor para o frenesi da vida, pela ânsia de viver, pelo significado literal da expressão "viver a vida", não é essa iminente sensação de uma futura guerra? Vai ser necessário que os homens se destruam novamente, para que se reergam e posteriormente se entediem por mais uma vez?
Há um fim nesse ciclo, sem que seja, por sua vez, a destruição novamente? E nesse caso, a derradeira, pois seria a destruição do mundo.
O livro chega nesse momento da minha vida que me encontro como o personagem e como o mundo se encontra no seu mesmo dilema. Iremos nos repetir? Mais uma vez? Fiquei com mais questões a serem respondidas do que cheio de respostas para o que precisava.
O personagem de Hans é tão real, que acaba parecendo que o livro é baseado em alguém. O que, na verdade, não deixa de ser. Uma junção de personalidades como a de Hans, pertencentes à época de outrora. A história é dele, mas não sobre ele. Não vai ser narrado sobre os pormenores dele. Na realidade, nem nos aprofundamos tanto em todas as suas facetas e nuances, arranhamos o que parece ser a superfície da sua personalidade, mas que no final das contas, é a rasa profundidade da mesma.
Tenho a sensação de Hans como um alguém que não é alguém. Não sei explicar... alguém avulso. Acabo sendo assim também? Reconheço essa sensação nele por refletir a minha? Pois é essa a sensação que o próprio escritor acaba nos dando nas últimas linhas. Hans foi emprestado para ele escrever essa história. Nunca mais saberemos dele e não nos interessa seu destino. Mas sim, esse período de sua vida que o levou a tomar a decisão do seu possível futuro.
Uma sensação de um grande "sei lá". De um grande tédio. De um grande vazio sem saída da vida. De um desânimo desesperançoso, com uma fantasia de que a morte será como a grande solucionadora dos problemas. O que há depois? Vai ser mais do mesmo ciclo? Posso me agarrar a esperança que finalmente será diferente? Que o tédio, a vagues, o vazio, a destruição e a morte, nesse ciclo infinito, não terão espaço também?
Como vi Hans se transformar em tudo, florescer e murchar, até então parar de existir, vou ver minha história, que não é a minha história, mas que serve para representar a de todos que estão passando por esse mesmo período na Terra, como eu. Logo mais irei desaparecer também.
Me foi horas escrevendo isso, deu quase a mesma quantidade de palavras do livro. Que horror.
Mesmo assim, gostaria de fazer um adendo. A cena do momento em que ele reencontra o primo, já morto. Essa aparição, não é para mostrar que ele viveu e experimentou tudo que àquela sociedade poderia dar à ele na época? Ficou um tanto curiosa essa passagem.
Me despeço de tudo isso, depois de 3 meses com eles, tocando delicadamente o canto de um dos olhos com a ponta do dedo.