Tiago.Cecconello 03/07/2024
Um livro profético
De Melville eu já tinha lido o espetacular Moby Dick, que mostra a genialidade e profundidade desse escritor que quase foi esquecido. Os homens de sua época não souberam compreendê-lo e, talvez, isso possa ser melhor entendido lendo Bartleby.
Trata-se de uma novela genial não só pela sua história criativa, satírica e milimetricamente escrita (sem excessos), mas, sobretudo, pela visão acurada dos males do capitalismo, ainda emergentes, e do que viria a se tornar o ser humano dentro desse sistema. Digo “viria” porque Bartleby parece muito mais com um sujeito que vive no semiocapitalismo financeirizado atual do que um sujeito que vivia no capitalismo industrial de sua época. De certa forma, podemos dizer que Melville foi profético.
Existem diversas interpretações para a obra. Muitas delas tratam Bartleby como um sujeito disruptivo, uma espécie de Messias que, com sua resistência passiva, conseguiu vencer o status quo e as imposições do sistema. Lembrando que, naquela época, ainda vivíamos em uma Sociedade Disciplinar (Ver Focault).
Porém, na minha visão, Bartleby é um protótipo do sujeito pós-moderno atual e, longe de ser um Messias, é o cúmulo da degradação humana. Existem três elementos no livro que ajudam a explicar minha teoria: o verbo preferir, o muro e boato de que ele trabalhava em um setor de cartas extraviadas.
Quando Bartleby diz ao seu patrão, após ser solicitado a fazer um trabalho, “prefiro não fazer”, a frase clássica e imortalizada na literatura, é importante compreendermos que preferir não significa necessariamente negar. Bartleby poderia dizer: - NÃO QUERO FAZER OU NÃO FAREI. Ele seria mais enfático, porém, ele usou o verbo preferir. Preferir significa escolher entre, no mínimo, duas coisas. E se você escolher uma opção, não significa que não gosta da outra. Eu posso gostar de sorvete e bolo, mas, se tiver que escolher entre um dos dois, eu prefiro o sorvete. Ao dizer prefiro não fazer, Bartleby deixa em aberto a possibilidade de que “pode gostar de fazer” ou que fará se o patrão insistir. Ele dá ao patrão a chance de resposta: “Você prefere não fazer, mas eu quero que você faça agora, se não fizer, adeus”. Porém, o patrão de Bartleby ficou desestabilizado com a resposta e aceitou a preferência do funcionário em não fazer. Talvez porque foi confrontado com o fato de que seus funcionários só o obedecem por obrigação. Por isso, o patrão fica, até o final da história, com peso na consciência. Peso que Bartleby, como uma espécie de absurdo existencial, coloca em sua cabeça.
Porém, o próprio Bartleby é um sujeito deteriorado e atomizado. Além de não ter vida social, ele literalmente faz do escritório e do trabalho o seu lar e sua razão de ser. Apesar de se negar a fazer o serviço de revisão do seu trabalho, pois o seu trabalho ele faz muito bem, Bartleby é um workaholic que só deixa de trabalhar quando é impedido por um problema de visão. Ele não tem amigos e passa o dia inteiro “contemplando uma parede”. A parede (wall) é uma palavra muito usada no texto e, a meu ver, simboliza o fechar-se, o separar-se do outro e do mundo, o alienar-se, um túmulo da vida! Tanto que Bartleby termina morrendo por inanição enroscado em uma parede.
O boato, no final do livro, de que ele trabalhava em um setor de cartas extraviadas, representa a extraviação do ser humano, como o próprio narrador diz no livro. Não tem nada mais triste do que separar cartas que jamais chegaram ao seu destino e enviá-las ao fogo, ao nada. É a mais triste representação da falta de sentido da vida, que acaba terminando em nada, sem um sentido, chegando a lugar nenhum.
Bartleby é mais que um personagem, é um processo de deterioração. É o fim assustador de todos o trabalhador explorado que, não sabendo fazer outra coisa na vida, acaba vivendo como um fantasma, um espectro, em seu local de trabalho (hoje, para muitos, sua própria casa). Um autômato que não sabe dizer não, negar! Que apenas prefere! Mas, se começarem a preferir não fazer, terminarão enroscados em uma parede (hoje, talvez em um celular). Resumindo: nesse sistema, o ser humano não tem saída, vai bater sempre a cara contra o mundo.
A frase final do livro é emblemática: “oh Bartleby, oh humanidade”.