Antonio Luiz 22/03/2010
A religião da lycra
“Por mais que eu gostasse do ambiente sagrado, era com os heróis das histórias em quadrinhos e não com a Bíblia que eu aprendia a compreender a moralidade, o respeito ao próximo, a compaixão e a decência. Heróis míticos como O Poderoso Thor, o Dr. Estranho e o Capitão América é que me inspiravam e incutiram em mim o importante sentido do encantamento”
Não, não é fala de um personagem de Woody Allen. O autor é real e quer ser sério. Quando por (muitas) vezes mostra desconhecer a história da humanidade fora das interpretações em quadrinhos, bem como a existência de vida inteligente (e até de quadrinhos de super-heróis) fora do mundo anglo-saxão, parece pensar como o califa que, numa lenda conhecida, mas falsa, mandou queimar os livros da Biblioteca de Alexandria: “se contradizem o Alcorão, são perniciosos. Se o confirmam, queimai-os também, pois são supérfluos”.
Referimo-nos a Christopher Knowles e seu livro "Nossos Deuses São Super-Heróis", no original "Our Gods Wear Spandex" ("Nossos Deuses Usam Lycra"). Esclarece pouco quanto à história objetiva desse ramo da indústria cultural, mas uma excelente fonte primária sobre seu fascínio, não apenas para fanboys como para entusiastas adultos.
Ninguém diga que o assunto é irrelevante. Como indústria, voa cada vez mais alto. Do primeiro Superman com Christopher Reeve (1978) até esta data, os longas-metragens de super-heróis (incluídos vingadores sem superpoderes, mas com fantasias, habilidades e bugigangas improváveis), faturaram 7,3 bilhões de dólares nominais no mercado estadunidense, 5 bilhões dos quais do Homem-Aranha de maio de 2002 ao Wolverine de maio de 2009.
De 1980 a 2001, o gênero representou, em média, menos de 2% da bilheteria de Hollywood, mas nos seis anos seguintes passou a 6% e em 2008 a nada menos de 15,3%. Nesse ano, O Cavaleiro das Trevas proporcionou a segunda receita nominal de todos os tempos no mercado dos EUA (superado só por Titanic) e faturou mais de um bilhão de dólares em todo o mundo. É só a ponta mais visível do iceberg: a bilheteria nos EUA é apenas 19% do faturamento efetivo dos filmes de Batman (bilheteria no exterior 15%, exibição na tevê nos EUA 10%, na tevê no exterior 8%, licenças e merchandising 19%, vídeos domésticos 29%), sem falar em gibis, brinquedos, desenhos animados, games e licenças do herói não diretamente ligadas aos filmes.
Por que o boom a partir de 2002? Um ingênuo poderia invocar o aperfeiçoamento da tecnologia de efeitos especiais, ou alguma (discutível) melhora dos roteiros a partir do Homem-Aranha de Sam Raimi. Mas Knowles tem outra explicação e – exagero épico à parte – pode estar certo.
“Só invocamos nossos deuses quando precisamos deles. Se a vida está fácil, nós os ignoramos. Na era Clinton, onde tudo era despreocupação e festa, a popularidade dos super-heróis atingiu seu nível mais baixo. Tudo isso mudaria em 11 de setembro de 2001. Mais uma vez, viam-se os bons sujeitos e os maus elementos, vilões e vítimas. Mais uma vez, a indústria das histórias em quadrinhos reagiu, fornecendo a uma nação confusa e aterrorizada os super-heróis que poriam ordem em tudo”.
De fato. Os super-heróis surgiram na Grande Depressão e tiveram seu primeiro auge com a II Guerra Mundial, mas foi a vitória de 1945 que lhes trouxe seu primeiro revés. Perderam mercado para o humor infanto-juvenil (Pato Donald, Archie) e – mais espetacularmente – para os gibis de crime e terror como Tales from the Crypt (no Brasil, Cripta do Terror). Ao lado de formas aparentemente mais inocentes de distração, a sociedade voltava-se para a contemplação de suas mazelas e seus piores medos, aprofundados pela violência sem precedentes do Holocausto, dos bombardeios incendiários e de Hiroshima.
Era perturbador para os vigilantes da moral. Se nem Hollywood estava acima da suspeita de subversão quando suas criações parecessem inspirar dúvidas sobre a justeza da sociedade estadunidense ou pôr em risco a pureza de sua juventude, muito menos os quadrinhos. Participaram da caça às bruxas tanto políticos e religiosos conservadores quanto especialistas que, no contexto da época, eram liberais.
Coube a um destes últimos, o psiquiatra Frederick Wertham, o papel de inquisidor-mor dos gibis. Conhecido por denunciar a participação de médicos no Holocausto, a segregação racial e a execução de doentes mentais, publicou em 1954 A Sedução do Inocente, um libelo contra os quadrinhos que, segundo ele, fascinavam e perturbavam os delinquentes juvenis dos quais cuidava. O alvo principal eram as histórias de crime e terror, mas também os super-heróis foram acusados de formas mais sutis do que era então considerado perversão.
Segundo Wertham, Batman e Robin seriam um casal homossexual e, por isso, um mau exemplo. É difícil negar que certas cenas e roteiros permitiam essa interpretação. A Dupla Dinâmica nunca mais se livrou totalmente da pecha, que continua a levar a periódicas tentativas de eliminar ou redefinir o menino-prodígio. A maioria dos filmes optou por ignorá-lo. Nos gibis, entre separações, mortes e trocas de identidade, Robin já teve cinco encarnações. Da penúltima vez (2004), tornou-se menina, expondo seu tutor a acusações de pedofilia. Em 2006, na mais recente e desesperada tentativa de exorcizar o fantasma de Wertham, experimentou-se fazê-lo filho natural de Batman.
A Mulher-Maravilha foi paralelamente “acusada” de ser lésbica, um “ideal indesejável para moças” e de insinuar práticas sadomasoquistas. Embora a exclamação favorita da heroína fosse “Sofredora Safo!”, as duas primeiras acusações pareciam estar impregnadas de preconceitos da época contra mulheres fortes e independentes. Já a última era abertamente admitida pelo criador da dominatrix, o heterodoxo psicólogo William Marston.
A campanha de Wertham chamou a atenção de um comitê do Senado e a indústria dos quadrinhos submeteu-se. Os gibis de terror tiveram de sair de circulação e os restantes se sujeitaram a um “Código de Ética” que proibia violência explícita, sedução, mortos-vivos, divórcios e crimes sem punição, bem como alusões a drogas, desvios sexuais ou autoridades corruptas.
A medida liquidou a maior parte dos gibis, mas teve um inesperado efeito colateral: a irrealidade dos super-heróis adaptou-se bem ao mundo irreal que o novo código exigia como a principal opção para os adolescentes que deixavam de apreciar Mickey, Pernalonga e Luluzinha. Foi preciso, porém, desinfetar cuidadosamente os personagens e os enredos para criar modelos de perfeição moral e acatamento à ordem estabelecida.
Superman, que aterrorizava fabricantes de armas e autoridades corruptas, tornou-se um submisso cumpridor da lei. Antes executor impiedoso de criminosos, Batman passou a entregar à polícia uma série de maníacos fantasiados. Para melhor fugir da realidade, os enredos foram em grande parte deslocados para aventuras em outros planetas e universos paralelos. Os criadores da banida "Tales of the Crypt" vingaram-se ao criar a revista "Mad", originalmente focada em satirizar esses gibis surreais, cujos heróis eram mornos e inexpressivos.
Wertham e o Código de Ética deram fim à chamada “Idade de Ouro” dos quadrinhos, mas sem querer criaram a mania estadunidense por super-heróis. No Japão, onde essa censura não existiu, tais personagens têm certa presença (Astro Boy, Super-Dínamo, Son Goku...), mas são mera fração do variado imaginário dos mangás. Na rica cultura de quadrinhos da Europa, são ainda mais marginais (se desconsiderarmos Asterix). Idem na América Latina (vale lembrar a "Velta" de Emir Ribeiro e a novela "Caminhos do Coração").
De coadjuvantes da Idade de Ouro dos comics, os super-heróis tornaram-se os astros absolutos da “Idade de Prata”. O Superman da Idade de Ouro corria mais rápido que uma locomotiva, arremessava automóveis e era imune a balas. O da Idade de Prata voava mais rápido que a luz, sobrevivia a catástrofes cósmicas e movimentava planetas com as mãos nuas.
Tais divindades pouco intervinham na Guerra Fria. Era preferível mantê-los no contexto do puro mito: envolvê-los em questões políticas reais seria pôr a nu o quanto eram inverossímeis. Mas como símbolos de submissão à (suposta) invencibilidade e incorruptibilidade dos ideais estadunidenses, eram perfeitos. Foram esses, propriamente, os deuses de lycra de Knowles.
A intuição de que eles representam uma aspiração à salvação e redenção em um sentido quase religioso é razoável, mas o autor elucubra conexões em excesso, como se todo criador de super-heróis fosse um ocultista decidido a ressuscitar um culto tradicional sob uma fantasia colorida.
Superman, por exemplo, teria conexão com o oculto. Provas? Antes, seus criadores trabalharam com o “Doutor Oculto”, um detetive do sobrenatural e o nome do seus planeta natal, Krypton, significa “oculto” em grego. Além disso, como sugere a capa do livro, Superman é disfarce do Cristo, como toda uma linhagem de super-heróis redentores e sacrificados. Mas os criadores do kryptoniano eram judeus, não tinham por que aderir ao mito cristão (o Messias judeu não é sofredor) e de ocultismo provavelmente só conheciam contos de horror à Lovecraft. Seu herói baseava-se em especulações da ficção científica sobre “raças” biologicamente mais evoluídas em outros mundos e numa visão popular do Übermensch nietzscheano. Se é para buscar um toque mítico, a salvação do bebê Kal-El evoca muito mais a história de Moisés.
Outra categoria de heróis seriam os protetores violentos da comunidade, cujo protótipo seria Batman, supostamente inspirado no golem mencionado nas lenda cabalistas. Provas? Basta que o criador, Bob Kane, tenha sido judeu. Seria mais proveitoso explorar as influências de vingadores mascarados mais antigos, como Pimpinela Escarlate, Zorro e o Fantasma (de Lee Falk), bem como a de Drácula e outros mortos-vivos dos quadrinhos de terror.
A terceira categoria seria a dos “mágicos” abertamente ocultistas, como o Mandrake, Dr. Destino e Dr. Estranho – mesmo se, na maioria das vezes, seus traços “esotéricos” pareçam vir da literatura pulp. Paciência. Knowles lembra líderes de seitas fundamentalistas que creem literalmente nos mitos e desconsideram as evidências em contrário.
O crepúsculo dos deuses veio nos anos 70, com a contracultura, o choque do petróleo e o Vietnã. A Idade de Prata foi encerrada em maio de 1971, quando o novato Homem-Aranha dispensou o selo do “Código de Ética” para contar uma história relativamente realista sobre drogas, bem aceita por distribuidores e leitores. Os super-heróis se humanizaram. Para não perder público, tiveram de abordar questões sociais e políticas, questionarem-se, sofrer derrotas ocasionais e ter problemas sentimentais e econômicos como qualquer mortal.
A “Idade de Bronze” durou até meados dos 80. Foi sucedida por uma geração sombria e brutal, liderada pelo feroz Wolverine e pelo criptofascista Batman de Frank Miller ("O Cavaleiro das Trevas"). Knowles a relaciona à proliferação do crack e a explosão da violência das gangues, mas parecem expressar, sobretudo, a resposta conservadora e repressiva da era Reagan e sucessores.
Também a “Idade do Ferro” (“do Cromo”, para o autor) teria acabado. Para Knowles, “se Jack Kirby é o profeta dos novos deuses e Alan Moore o feiticeiro supremo, Alex Ross é o mais destacado apóstolo da nova religião”, inaugurada com sua série O Reino do Amanhã (1996), na qual os idealistas da Idade de Prata retornam para varrer do mapa seus degenerados sucessores, em traços épicos inspirados no Apocalipse e na Segunda Vinda de Cristo.
Na verdade, a quinta idade (“Renascença”?) é mais complexa. Tende mais a “bons princípios”, mas também a menos poder e mais realismo e ironia. Arrisca comentários sociais e políticos: Lex Luthor elegeu-se presidente em 2000 e em 2002 sabe antecipadamente de uma invasão alienígena sem acionar qualquer plano de defesa. Em 2006, enquanto os republicanos apanham nas urnas, os heróis da Marvel travam uma guerra civil, ao fim da qual o Capitão América, líder do lado “republicano”, é derrotado pelo “democrata” Homem de Ferro e acaba morto por um pistoleiro.
O super-herói agora tem como principais veículos o cinema e a tevê (embora o gibi continue seu “campo de provas”), pode pertencer a minorias étnicas e sexuais e até dispensar fantasias coloridas, como na série Heroes ou em Corpo Fechado de Night Shyamalan. Cada vez fascina mais os adultos e mistura fantasia e realidade. Obama aparece ao lado do Homem-Aranha, é retratado por Ross como um super-herói e uma nova série de quadrinhos o faz um novo Conan, tendo seus rivais políticos, como vilões. “Ai do povo que necessita de heróis”, dizia Brecht. O que diria dos super-heróis?