Miguel Freire 08/04/2024
Miséria e Redenção
Ao terminar de ler Crime e Castigo, a primeira coisa que me veio à cabeça foi relê-lo, pois eu descobri nele um tesouro literário tão cheio de riquezas, que fiquei receoso de ter perdido alguma coisa; eu queria gravá-lo na memória, cada frase, cada palavra, porque todas elas eram extremamente preciosas e não poderiam ser deixadas de lado ou esquecidas (eu certamente teria feito isso se não tivesse grifado os trechos principais e feito várias anotações).
Crime e Castigo não é aquele livro que você termina em uma semana; sem uma leitura mais atenciosa, seria uma chatice mesmo: frases entrecortadas, pontuação estranha, pensamentos se interrompendo no meio, páginas e páginas de discussões filosóficas que (aparentemente) não têm nada a ver com a história... enfim, é um livro deveras denso, porém não impossível, bastando um pouco de paciência e um bom dicionário para vencê-lo.
O enredo conta basicamente sobre Raskholnikóv, um jovem estudante de direito que assassinou duas mulheres e sua jornada turbulenta em direção à redenção. Raskholnikóv é um moço pobre, orgulhoso, mesquinho, antissocial e perturbado mentalmente. Dostoiévski era um cara que conhecia muito bem a natureza humana, principalmente a dos criminosos (ele foi condenado a oito anos de trabalhos forçados na Sibéria, e lá conviveu com todos os tipos possíveis de marginais) e, se o livro tem um estilo muito sofrido, é porque o escritor realmente teve uma vida muito (mas MUITO) difícil. Essas experiências e esse conhecimento se refletem no que, na minha opinião, é a principal virtude de Dostoiévski: as descrições psicológicas.
O escritor não se limita a fazer um breve retrato do personagem; ele desnuda totalmente a alma deste, descrevendo todos os sentimentos, pensamentos, desejos ou ideias mais obscuras do seu ser, todo o estado geral da mente e do corpo de uma forma tão brilhante que me cativou profundamente. Essas revelações não se dão somente por meio da descrição, mas principalmente pelos diálogos e monólogos, que cobrem a maior parte do livro. Esse destaque que Dosto dá para a psicologia dos personagens é maior que o da descrição dos ambientes e pessoas, se limitando a pontuar apenas os detalhes necessários destes. É um livro profundo, tanto nos temas que ele encerra em si: redenção, sofrimento e sentido da vida, quanto na linguagem usada para esses temas.
Aquilo que incita Raskholnikóv a cometer assassinato é uma consequência direta da desumanização advinda das correntes de pensamento modernas, principalmente do niilismo, que chegavam à Rússia na época. Crer que se pode dividir a humanidade em castas superiores e inferiores e matar alguém só para provar que está entre os primeiros pode parecer uma ideia vinda de um louco; mas nosso protagonista é um sujeito perfeitamente são, e essas ideias não eram estranhas a ele, e tenho que certeza que não eram (e ainda não são) para muita gente.
Mas mesmo no meio de tanta lama, de tanta desgraça, Dosto consegue tirar esperança de uma forma sincera e real, sem clichês ou moralismos, nos proporcionando uma das melhores histórias sobre redenção de todos os tempos.